Por Valdecir Pascoal*
Rebentos da mesma época, vejo encarnada em você a nobre missão de me proteger. Como acontece hoje no Brasil, vivíamos, no final do século XIX, um momento de grandes e históricas transformações institucionais e sociais, com destaque para o meu nascimento. Como hoje, não obstante as tensões sociais e os riscos históricos de alguns passos, próprios dos períodos de inflexão, os ventos resultantes sopravam na direção de dias melhores. A monarquia, por sua própria índole, não exigia dos seus representantes compromisso maior com o dever de prestar contas dos recursos da Coroa. Comigo, essa responsabilidade é destino, é razão de ser. Na medida em que a “Res” passa a ser pública, os governantes precisam zelar pela boa gestão, prestar contas, ser transparentes e se submeter aos mecanismos institucionais e sociais de controle.
Foi nesse contexto que, inspirado na experiência europeia e nos estudos e ideais de muitos outros brasileiros, a quem denominou de verdadeiros “respúblicos”, que Rui Barbosa, o seu mais ilustre defensor, convenceu o novo Governo e o Congresso a criá-lo nos moldes de uma instituição peculiar, uma espécie de “magistratura intermediária à administração e à legislatura, que, colocado em posição autônoma, com atribuições de revisão e julgamento, cercado de garantias contra quaisquer ameaças, pudesse exercer as suas funções vitais no organismo constitucional, sem risco de converter-se em instituição de ornato aparatoso e inútil”.
Confesso que passados esses mais de cem anos de vivência institucional, sobrevivendo a cinco Constituições e a longos períodos de escuridão democrática, cheguei a temer pelo seu futuro e, por conseguinte, pelo meu próprio. No entanto, com a Constituição Cidadã de 1988, que valorizou, como nenhum outro Estatuto, o seu papel como meu guardião e protetor da gestão e da democracia, tive a certeza de que a sua essencialidade seria sustentável.
Nada obstante, é justamente nesta atual quadra da história — em que se celebra o 28º aniversário dessa mesma Constituição e a população reconhece inequivocamente o papel que lhe cabe como instituição fundamental para a eficiência da gestão e para a prevenção da corrupção, conforme revelou pesquisa nacional realizada pelo Ibope — que você tem pela frente alguns dos seus maiores desafios. Com a devida licença, permita-me tecer algumas reflexões sobre três deles: (1) o seu papel para efetividade da Lei da Ficha Limpa, (2) a importância de sua atuação preventiva e cautelar e (c) a necessidade de sua autonomia orçamentária. E antecipo, desde já, que estou otimista quanto à superação destes obstáculos.
Em relação à Lei da Ficha Limpa, estou certo de que, mais cedo do que mais tarde, o STF evoluirá do excesso de cautela demonstrado nesta última decisão de agosto de 2016, adotando uma interpretação que esteja em melhor sintonia com as realidades institucionais e sociais e assegure mais efetividade a todo o sistema constitucional de controle externo, cujas competências conferidas aos Tribunais de Contas, vale lembrar, também emanam de um poder democrático. Ao final, esteja certo, o Supremo, como vem fazendo em outros temas do controle e da cidadania, reconhecerá, nos Tribunais de Contas, a competência para julgar as chamadas contas de gestão de prefeitos ordenadores de despesas, com o que essa decisão técnica deverá continuar sendo um poderoso filtro para afastar o joio e permitir que o trigo seja o alimento-mor da boa governança pública e da qualidade da democracia.
Com a mesma certeza, acredito que não haverá retrocesso em relação ao poder cautelar, que reputo como uma das atribuições que vem sendo exercida por você com mais denodo e efetividade, seja quando evita o prosseguimento de uma licitação viciada, impede uma repactuação contratual antieconômica ou quando procura garantir o ressarcimento do erário ante evidentes indícios de prejuízos ou de desvios. Todos os dias tomamos conhecimento de suas ações profiláticas que têm evitado vultosos danos ao erário. Neste caso, há que prevalecer a máxima popular de que “prevenir é sempre o melhor remédio”.
A propósito, o seu maior patrono já alertava para a importância da fiscalização preventiva naquela mesma mensagem histórica em que justificava a sua criação, baseada, em grande medida, no modelo italiano de Tribunais de Contas. Decerto que em cada caso concreto sempre existirão nuances que podem delimitar o exercício da competência cautelar, porém a posição individual de um magistrado, por mais respeitável que seja, não terá o condão de mudar a essência de uma jurisprudência já consolidada e lastreada na melhor teoria da interpretação constitucional. Esteja certo, ademais, que ao exercer essa atribuição, você não estará, como sugerem alguns, “indo além das sandálias”. Aqui não se aplica a máxima do grego Apeles, pois é a própria Constituição quem lhe assegura o exercício pleno de todos os matizes que compõem a pintura constitucional que norteia a aplicação dos recursos públicos.
Por último, mirando agora para o Parlamento, deparo-me com uma proposta de congelamento do seu orçamento. É verdade que a grave crise fiscal por que passa o país demanda austeridade e atitude exemplar, mormente daquelas instituições, como é o seu caso, encarregadas de zelar pela responsabilidade e equilíbrio fiscal. Mas duvido que, ao fim, o Legislativo enverede por esse descaminho darwiniano; que colide com o bom senso, os dados de realidade, os princípios federativo e da isonomia e que parece mais combinar com desinformação ou uma tentativa individual de “cortar as asas” de quem, a cada dia, incomoda mais àquele que caminha fora de minhas balizas.
Refletindo sobre todo esses contextos de desafios, concluo que as novas pedras que estão surgindo no caminho se devem muito mais aos seus avanços, fazendo as vezes das inevitáveis “dores do crescimento” institucional.
Permita-me, contudo, algumas ponderações derradeiras, com recurso à máxima sabedoria grega, consignada no oráculo de Apolo, em Delfos, que nos recomenda: “Conhece a ti mesmo”. Nenhuma instituição é perfeita e você, como todas as outras, pode melhorar. Neste sentido, e para me proteger de forma ainda mais plena, é fundamental o seu irrestrito apoio às iniciativas que busquem atenuar as assimetrias e consolidar o “Sistema” de Controle Externo, a exemplo do já exitoso Programa QATC – Qualidade e Agilidade dos Tribunais de Contas da Atricon, da aprovação de uma lei processual nacional de contas e da criação do CNTC – Conselho Nacional dos Tribunais de Contas.
Nesta mesma senda, é preciso estar consciente de que o seu aprimoramento contínuo, bem como o da qualidade do processo de controle externo das contas públicas não passará ao largo do fortalecimento do papel da instância decisória (ministros, conselheiros e substitutos), do seu Corpo Técnico e do Ministério Público de Contas. Neste aspecto, resguardadas as limitações e as atribuições constitucionais de cada órgão e segmento que compõem o “corpo” ideal que representa e simboliza o controle externo exercido no seu âmbito, o farol indica que o melhor caminho a ser trilhado deve se inspirar na figura do “Homem Vitruviano”, de Da Vinci.
Valendo-se, ademais, da nossa histórica e natural cumplicidade, sugiro que não olvide a necessária reflexão sobre o seu modelo de composição. Bastante razoável e deveras aprimorado, se comparado aos que vigoravam anteriormente, foi sob sua égide, sejamos justos, que ocorreram os marcantes avanços registrados nos últimos 28 anos. Mas é forçoso reconhecer que uma única indicação de membro que não esteja em perfeita sintonia com os requisitos da idoneidade moral e da reputação ilibada, por exemplo, costuma ter o condão de mitigar a confiança em todas as instituições que formam o sistema. Além de pugnar pela fiel observância dos requisitos para os cargos, ninguém mais legitimado do que você próprio para estimular um debate transparente e maduro sobre a possibilidade de aprimoramento do modelo.
Finalizo essa reflexão reiterando minha confiança e profissão de fé em você, Tribunal de Contas. Continue trabalhando com equilíbrio e firmeza, procurando ser exemplo de transparência e de boa governança, atuando em rede e em parcerias estratégicas com todos os órgãos de controle e estreitando cada vez mais a sua amizade com a democracia e com a cidadania.
*Valdecir Pascoal é Presidente da Atricon (Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil) e Conselheiro do TCE-PE