Fabrício Motta
Em nenhum lugar do mundo se fala tanto sobre evidências como no Brasil. Para ser mais preciso, há cerca de 35 anos cantamos em todos os lugares, a plenos pulmões, a canção composta por José Augusto e Paulo Sérgio Valle e imortalizada nas vozes de Chitãozinho e Xororó. Como resistir a uma música cujo ritmo vai ganhando uma cadência impensada e culmina com uma provocação: “diz que é verdade, que tem saudade, que ainda você pensa muito em mim”? A música — que muitos proclamam ser uma espécie popular de hino brasileiro – trata de contradições, sentimentos, aparências e, claro, evidências.
As evidências objeto deste artigo não estão diretamente ligadas à música popular brasileira: me refiro às políticas públicas baseadas em evidências (PPBE), também na moda por aqui. A trajetória das PPBE [1] pode ser reconstituída com o estabelecimento de alguns marcos importantes:
a) nos anos 1950, o desenvolvimento das disciplinas de monitoramento e avaliação de políticas públicas, notadamente nos Estados Unidos;
b) na década de 1980, à evolução do processamento de dados pela informática somou-se a doutrina do new public management, enfatizando a primazia da eficiência, a importância da relação custo-benefício e a necessidade de se tratar o cidadão como “cliente”;
c) a chamada “medicina baseada em evidências” ganha corpo a partir dos anos 1980 preconizando a tomada de decisões médicas a partir de investigações científicas — o movimento teve importância crescente e, talvez, seu ápice como contraponto ao negacionismo científico propagado na pandemia do Covid-19.
A referência às políticas públicas, por outro lado, pode ser simplificada com a frase “o Estado em ação”, como ensina Maria Paula Dallari Bucci. Tomo a liberdade de encurtar o caminho proposto invocando o que escrevi em outra oportunidade:
“O jurista formado sob os cânones tradicionais que passa a pensar, enxergar e interpretar o direito tendo políticas públicas como eixo condutor (ou, para ser mais preciso, utilizando a abordagem de direito e políticas públicas) pode sofrer uma relativa crise de identidade. Com efeito, seu foco se deslocará das pequenas partes para o todo, da solidão para a multidão, da estática para o movimento. O pensar não só em cada um dos instrumentos, mas também na orquestra, nos maestros e músicos (iniciantes ou virtuoses) conduzirá o foco central para a plateia (os cidadãos), com o compromisso de entender o que a harmonia da música pode – na verdade, deve – lhes proporcionar. Nesse cenário complexo, a primeira dificuldade do jurista será reconhecer suas limitações e desconhecimentos para conhecer a vida como ela é nas ruas, praças e calçadas, não só nos códigos. A pretensão de transformar a realidade e cumprir as muitas promessas sociais feitas pela Constituição de 1988 exige, primeiro, que se conheça a realidade; que sejam identificados os problemas; que esses problemas sejam incorporados à agenda pública para que, então, seja planejada uma solução a ser implementada, monitorada e avaliada. No que se refere ao direito público, pensar com o mindset das políticas públicas é reconhecer que o trabalho do jurista é, talvez, o mais fácil – o mais difícil será compreender a dinâmica dos movimentos, os papéis dos diferentes atores e o grau de institucionalização necessário. Políticas públicas não se confundem com as normas que lhes dão suporte, tampouco têm nas leis os seus exclusivos instrumentos. Organização, planejamento, ação, acompanhamento, controle, aprendizado – palavras soltas que podem ser consideradas como etapas impostas ao Estado para desenvolver suas muitas atividades utilizando a regulação jurídico normativa, mas não se limitando a ela” [2].
Evidências se inserem nas políticas públicas como elementos resultantes da transformação de dados em informações que sejam úteis na tomada de decisões. Trata-se de um conceito polissêmico, aberto, que deve ser empregado considerando-se uma determinada moldura conceitual, na lição de Maurício Saboya Pinheiro [3].
O autor identifica dois modelos gerais de evidências, situados em extremos opostos:
a) racionalista: herdeiro de uma visão filosófica clássica de cunho iluminista, racionalista, positivista e utilitarista, considera que os processos sociais e políticos são conduzidos por decisões puramente racionais; e
b) construtivista: enxerga os processos sociais e políticos como “construídos” pela interação entre agentes em suas disputas por poder; sendo as decisões tomadas em um ambiente de incerteza radical, sujeito às diversas construções interpretativas.
Enquanto uma visão da realidade mais pautada no modelo racionalista tende a induzir uso mais técnico, das evidências, com privilégio para dados empíricos quantitativos e passíveis de modelagem estatística, uma visão mais construtivista acarretará um uso mais amplo de instrumentos informativos, mesmo aqueles mais pessoais (frutos de experiências individuais) e menos objetivos.
Afastando-se dos extremos, Maurício Saboya Pinheiro propõe a construção de um modelo moderado que considere que o tipo de instrumento informativo e o modo de uso dependem da forma como o agente concebe a realidade social sobre a qual atua. O modelo proposto contempla os seguintes pressupostos epistemológicos:
“P1) apreender o social, o econômico e o político como sistemas complexos, porém racionalmente analisáveis; P2) considerar os limites do conhecimento em geral, a falibilidade do conhecimento científico e as especificidades do conhecimento em ciências sociais; P3) considerar o status epistemológico (científico) da disciplina ou área de política sob questão; e P4) entender o uso das evidências dentro de uma estrutura geral de ação do policymaker ou de outros stakeholders (conforme o caso), a qual, por sua vez, se especifica dentro de uma moldura contextual”.
O modelo é interessante justamente por ser moderado e por não depositar fé cega nas evidências, notadamente quando se trata de políticas públicas sociais. Evidências devem ser vistas não como respostas prontas, mas como informações que permitem o aprendizado voltado à busca de eficiência e eficácia das políticas públicas. Essas considerações se aplicam tanto na consideração do Estado que produz evidências [4] como do Estado que incorpora evidências produzidas externamente.
A despeito do uso disseminado na medicina intuitivamente aproximar a noção de evidências àquelas produzidas mediantes experimentos randomizados, o modelo acima comentado indica a importância de abordagem mais ampla. Nessa perspectiva, evidências podem ser entendidas como “[…] dados gerados no âmbito de pesquisas científicas realizadas por universidades e institutos de pesquisa, assim como podem resultar de avaliações internas feitas pelos próprios governos sobre suas políticas. Podem ainda ser encontradas em auditorias de órgãos de controle, em relatórios e notas técnicas produzidas pela burocracia estatal ou ainda como resultado de avaliações externas de consultorias especializadas contratadas pelo poder público” [5].
Em se tratando do uso de dados para tomar decisões públicas, é possível refletir sobre o delineamento jurídico do uso de evidências. Para muito além de considerações sobre informações públicas e sobre o acesso a tais informações, é interessante verificar como a Constituição da República incorpora os diversos processos políticos e jurídicos ligados à dinâmica das políticas públicas. Para os propósitos deste singelo artigo, limito-me a uma busca (um CTRL + F) dos termos monitoramento, avaliação e controle, verificando se as referências se aplicam às políticas públicas.
Em um emaranhado de órgãos, competências e diretrizes gerais, uma presença relevante: a sociedade tem sua participação assegurada nos processos de formulação, monitoramento, controle e avaliação das políticas públicas sociais (artigo193, parágrafo único). Essa regra se soma àquelas outras que determinam que as leis orçamentárias devem observar os resultados do monitoramento (artigo 165, §16) e que os órgãos e entidades devem avaliar políticas públicas (artigo 37, §16), além das competências ligadas às atividades de controle interno e externo (artigo 70 e seguintes).
No plano infraconstitucional, destaque para a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro ao exigir a consideração das consequências práticas e motivação demonstrando necessidade e adequação, inclusive em face das possíveis alternativas (art.20 e seu parágrafo único).
Evidências são um dentre outros elementos que contribuem para as decisões administrativas — não trazem necessariamente respostas absolutas, certezas derradeiras. Evidências devem ser consideradas como oportunidades para inovação e aprendizado, com correção de rumos e verificação de fatores que impedem a eficácia de soluções pensadas.
Servem não somente para buscar o que funciona, mas sobretudo para dizer o que não funciona — e, a partir daí, na moldura situacional, buscar a construção de respostas eficazes. A presença necessária da sociedade nas etapas de formulação, monitoramento, controle e avaliação impele ao reconhecimento da dimensão política (em sentido amplo) das evidências, sobretudo na arena de debates. O que não se admite é negar as aparências e disfarçar as evidências: motivação, transparência e integridade impedem que as políticas públicas sigam o ritmo da música!
Fabrício Motta é conselheiro do TCM-GO e diretor de Relações Jurídico-Institucionais da Atricon