Bruno Dantas
Nos arredores da Baía de São Francisco, dois guindastes amarelos permanecem imóveis sobre uma obra inacabada. Essa imagem, recentemente retratada pela revista britânica The Economist (em 12 de julho), simboliza uma crise institucional que hoje paralisa metade dos grandes projetos comerciais iniciados nos Estados Unidos após 2020. Um cenário reforçado pelo relatório de 2023 do U.S. Government Accountability Office (GAO), órgão equivalente ao Tribunal de Contas da União (TCU), que alertava que 69% das obras públicas federais americanas enfrentavam atrasos em razão de contratos mal desenhados e falhas regulatórias.
O Brasil conhece bem essa realidade. Embora existam hoje cerca de 12 mil obras federais paralisadas, muitas são pequenos projetos interrompidos por insuficiência financeira ou falhas técnicas pontuais. Porém, dentro dessa vasta miríade, encontram-se também obras estruturantes, que materializam grandes investimentos privados a serem amortizados por meio de concessões públicas e tarifas ao longo de décadas e que se encontram paralisadas justamente devido a deficiências graves no desenho contratual. É nesse ponto que nosso país se aproxima da crise institucional vivida nos Estados Unidos.
O núcleo do problema é conhecido pela literatura jurídica e econômica. Contratos incompletos, incapazes de antecipar adequadamente riscos e situações críticas, resultam em disputas custosas e demoradas. Como demonstra a teoria contratual do Nobel de Economia Oliver Hart, acordos mal estruturados não apenas provocam atrasos, mas geram incertezas jurídicas que afastam investidores e prejudicam o desenvolvimento econômico.
Diante desse quadro, o legislador brasileiro fez uma opção explícita pelo consensualismo, incluindo expressamente a administração pública nessa perspectiva. Desde 2015, essa opção está claramente refletida no Código de Processo Civil (CPC), que determina a criação de centros especializados em mediação e conciliação. Na mesma linha, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), especialmente em seu artigo 26, reforça a importância de soluções jurídicas consensuais no ambiente administrativo, como forma de evitar o desgaste das disputas judiciais.
Foi nesse contexto institucional, alinhado às melhores práticas internacionais, que o TCU implementou sua câmara de mediação, formalmente denominada Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos (SecexConsenso). Criada em dezembro de 2022 e operacional desde janeiro de 2023, essa secretaria buscou inspiração direta na Câmara de Mediação do Conseil d’État francês, reconhecida mundialmente por sua capacidade preventiva na resolução de disputas contratuais no setor público.
Ao introduzir uma mudança substancial na forma como o controle externo tradicionalmente atua, a SecexConsenso realiza um controle concomitante aos processos de negociação contratual. Diferentemente do modelo clássico, onde o controle ocorre somente após a formalização dos contratos, a secretaria participa das tratativas iniciais, identificando antecipadamente falhas contratuais e riscos futuros, sugerindo caminhos alternativos para assegurar a preservação do interesse público.
A governança dessa nova câmara é conduzida por meio das Comissões de Solução Consensual, compostas por auditores do TCU, especialistas técnicos das agências reguladoras, representantes dos ministérios envolvidos, membros da Advocacia-Geral da União (AGU) e representantes das empresas privadas prestadoras de serviços públicos. Essa composição multidisciplinar garante uma visão abrangente e técnica das questões, permitindo soluções equilibradas e eficazes.
Desde a sua implementação, os resultados da SecexConsenso têm sido notáveis. Apenas no setor elétrico, contratos emergenciais mediados pela secretaria já garantiram economia superior a R$ 800 milhões para os consumidores brasileiros. Casos emblemáticos também foram registrados nas concessões ferroviárias das Malhas Paulista e Sul, bem como em concessões rodoviárias estratégicas, como a BR-101 (ES/BA), onde investimentos puderam ser antecipados e litígios prolongados foram evitados.
Embora relativamente recente, essa iniciativa já está consolidada. Semanalmente debatida nas sessões do plenário do TCU, a experiência da SecexConsenso também se tornou objeto frequente de seminários, simpósios acadêmicos, artigos científicos e trabalhos acadêmicos de mestrado e doutorado, refletindo sua relevância teórica e prática.
Essa estratégia de governança consensual, transparente e participativa, apresenta uma nítida contraposição ao cenário retratado pela Economist nos Estados Unidos. Lá, a ausência de um controle preventivo tem produzido canteiros vazios, prejuízos bilionários e incertezas generalizadas. Aqui, ao contrário, a opção explícita do legislador pelo consensualismo permitiu ao TCU estabelecer um modelo institucional de referência.
Como bem ressalta o jurista Guido Calabresi, reduzir a fricção jurídica é essencial para minimizar os custos sociais decorrentes dos conflitos. A Câmara de Mediação do TCU, inspirada na exitosa experiência francesa, concretiza exatamente essa ideia: substitui contratos frágeis por acordos robustos, converte obras paralisadas em projetos finalizados e transforma a tradicional cultura de litígios numa nova cultura institucional baseada no consenso, na eficiência e na segurança jurídica.
Mais do que um mecanismo técnico de resolução, a SecexConsenso tornou-se um símbolo da nova racionalidade administrativa brasileira, comprometida com o desenvolvimento sustentável e a recuperação da confiança pública, oferecendo ao país um caminho sólido para superar a crise dos contratos imperfeitos.
Bruno Dantas é ministro do TCU e ex-presidente da Corte
Artigo originalmente publicado no Correio Brazileinse em 17.07.2025