Mais do que comemorar a efeméride do primeiro ano de vigência da Lei federal nº 13.005/2014, hoje importa que a sociedade brasileira assuma as metas do novo Plano Nacional de Educação – PNE – como um processo civilizatório inadiável, cuja concretização depende de nossas ações e omissões no curso dos presentes dias.
Planejamento para dez anos, por óbvio, reclama ações concretas a cada dia que se apresenta e já se passaram 365 desde 25 de junho de 2014… Daí é que nós nos perguntamos sobre o quanto temos sido capazes de tirar do papel o planejado para a educação pública do país ao longo desse último ano? Quão “educadora” tem se revelado a nossa pátria pelo prisma das ações governamentais empreendidas desde a entrada em vigor da norma em comento?
O momento e o contexto nos impõem, pois, uma relevante cota de responsabilidade pelo atual estado de coisas na política pública de educação. Isso porque o nível de aderência dos governos ao aludido Plano Nacional também diz respeito aos órgãos de controle. Em nossa seara, por exemplo, tal teste de aderência se materializa na efetividade e qualidade (ou não) dos gastos públicos em educação realizados para cumpri-lo.
Na teoria, planejar, executar e controlar são atividades dinâmicas que se interimplicam ao longo do ciclo da ação governamental, razão pela qual elas deveriam se retroalimentar em um processo pedagógico de diagnóstico de falhas, avaliação de resultados, aprendizagem e correção de rumos. Algo, contudo, não tem funcionado como ensinam os manuais, pois há 81 (oitenta e um) anos[1] vertemos gastos mínimos[2] em educação sem que tenhamos alcançado notas médias de desempenho minimamente decentes para as redes públicas de ensino.
Sem trocadilhos, a verdade é que padrões mínimos de gasto não podem ser lidos como permissivos para padrões ínfimos de qualidade[3] e para o descumprimento[4] das obrigações legais de fazer contidas no plano nacional do setor. Há décadas muitos gestores alegam escassez de recursos[5] para atender a tantas demandas majoradas, mas tal pressuposto precisa ser revisitado e confrontado pelo fato de que é preciso gastar bem os recursos públicos destinados à educação.
Não há desculpas para situações de desrespeito que se consolidaram em sucessivas gerações de brasileiros sem acesso à educação pública e/ou sem educação de qualidade. Esse histórico de fracassos coletivos e inércia governamental nos diz respeito e precisamos aqui lembrar, a título de relevante ilustração, que a universalização de oferta, até 2016, da educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade é determinada pelo inciso I do art. 208 da Constituição, combinado com o art. 6º da Emenda Constitucional n.º 59/2009. Ou seja, há praticamente seis anos sabemos que será obrigatório, até o final de 2016, incluir na educação infantil todas as crianças de 4 e 5 anos, bem como no ensino médio todos os jovens de 15 a 17 anos, além de mantermos os alunos no ensino fundamental dos 7 aos 14 anos. Mas sinceramente é real e sério o temor[6] de chegarmos ao final do próximo ano com milhões de brasileiros fora da escola, ainda que tenham idade para a frequentarem obrigatoriamente.
Se se consumar esse cenário trágico, os órgãos de controle passarão a atuar, na medida em que o não oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público ou sua oferta irregular importa responsabilidade da autoridade competente (art. 208, § 2º da Constituição Federal de 1988 e art. 54, § 2º, do Estatuto da Criança e do Adolescente). O problema é o custo de esperarmos o dano ocorrer para, só então, as instâncias de controle passarem a reagir em face desse passado recalcitrante de omissões e descumprimentos.
Eis o ponto de inflexão! Interessa-nos, neste primeiro aniversário do PNE, movimentar nossas energias, como já temos feito[7], em prol de outro tipo de olhar sobre a eficácia e a efetividade das suas metas. Mais do que reagir, perseguindo as falhas já consumadas, precisamos controlar preventiva e concomitantemente o modo como os gestores públicos internalizam e executam os ditames da Lei 13.005/2014 em seus âmbitos locais, regionais e federal de atuação. Melhor forma não há do que passarmos a olhar com mais atenção sobre o comportamento das despesas que avaliamos a título de gasto mínimo nesse setor.
Para tanto, defendemos que o controle dos gastos mínimos em manutenção e desenvolvimento do ensino – MDE – pela União, pelos Estados, Distrito Federal e Municípios precisa ser feito em consonância com o controle do cumprimento substantivo das obrigações constitucionais e legais referidas a tal política pública.
Ao nosso sentir, o dever de gasto mínimo em educação não se resume formalmente aos porcentuais da receita de impostos e transferências previstos no caput do art. 212, mas também deve assegurar o atendimento das necessidades do ensino obrigatório, no que se refere à universalização, à garantia de padrão de qualidade e à equidade nos termos do plano nacional de ensino, tal como determina o § 3º[8] do aludido dispositivo da CF/1988.
Retomamos, desse modo, que a Constituição de 1988 impõe, como conteúdo material das atividades de manutenção e desenvolvimento do ensino para fins do art. 212, um conjunto de obrigações normativas de fazer fixadas temporalmente por meio dos princípios substantivos do art. 206 e das metas inscritas no Plano Nacional da Educação de que trata o art. 214.
Esta é a razão pela qual sustentamos que não se trata de mera aferição contábil-matemática a análise acerca do dever de aplicação dos patamares mínimos de gasto em MDE previstos no art. 212 da Constituição de 1988, bem como da aplicação dos recursos do fundo de manutenção e desenvolvimento da educação básica e de valorização dos profissionais da educação – FUNDEB, a que se refere o art. 60 do ADCT.
Cada centavo de gasto precisa ser lido em conformidade com o PNE, em rota de plena vinculação aos prazos de consecução das suas metas. Desse modo e muito em breve, não poderemos mais admitir, por exemplo, que sejam pagos – como despesa feita à conta do FUNDEB – abonos remuneratórios aos profissionais da educação básica, sem que esteja assegurado o cumprimento do piso nacional a que se refere o art. 206, VIII da Constituição Federal e a meta 18 do Plano. Aqui temos, por sinal, uma consequência bastante clara do que consideramos conteúdo material do dever “gasto mínimo” em educação.
Diante da absoluta prioridade com que o Estado deve assegurar o direito à educação para as crianças e os adolescentes, na forma do caput do art. 227 da CF/1988, todas as instâncias de controle da Administração Pública e, em especial, o sistema de controle externo precisam dar plena ênfase ao cumprimento do art. 10[9] do Plano Nacional de Educação, para que as leis orçamentárias sejam formuladas conforme esse objetivo filtro de conteúdo. Outro “mínimo existencial”, aliás, não há para o controle dessa política pública seja na esfera judicial, seja no âmbito do controle externo ou em qualquer outra instância.
Nesta quadra da história, o relevante papel dado pela Constituição de 1988 ao Tribunal de Contas e ao Ministério Público que ali oficia vai muito além da avaliação de legalidade das ações e omissões governamentais. É preciso que atuemos incisivamente sobre o dever de planejamento orçamentário suficiente a ser desincumbido por todos os níveis da federação, o que significa previsão de dotações capazes de comportar o cumprimento das obrigações legais e constitucionais de fazer nessa política pública, conforme os prazos e termos fixados na norma de regência.
Por outro lado, diante do processo de execução da despesa, devemos avaliá-la à luz das suas legimitidade e economicidade, antes que a admitamos validamente como gasto mínimo em educação, o que também há de ser aferido segundo sua conformidade com a máxima eficácia dos princípios do art. 206 da Constituição de 1988 e das metas e estratégias da Lei 13.005/2014.
Levar o direito à educação a sério, como bem diria Ronald Dworkin, é interpretá-lo sistemicamente em um ordenamento hígido e íntegro que impõe obrigações substantivas a serem asseguradas mediante um dever procedimental de gasto mínimo nas ações de manutenção e desenvolvimento do ensino.
Neste aniversário de um ano de PNE, precisamos levar a sério suas metas até para que possamos aprender, com consistência, a gastar bem os recursos estatais vertidos há tantas décadas, em regime de piso constitucional, para a educação pública brasileira.
Assim e somente assim será factível, em 2023, cumprir a promessa histórica de alcançarmos patamares de desempenho e qualidade de ensino dignos de aprovação (nota média 6 em 10)! Quimera? Certamente não. Como dissemos desde o início, este é um processo civilizatório que não pode mais ser postergado.
[1] Desde a Constituição da República de 1934.
[2] Conforme o art. 212 da CF/1988, 25% (vinte e cinco por cento) das receitas de impostos e transferências para Estados, Distrito Federal e Municípios e 18% (dezoito por cento) para a União.
[3] Sem prejuízo do complexo debate sobre o custo aluno qualidade, que fixará os padrões mínimos nacionais de qualidade no ensino e os indicadores de gasto educacional necessários ao seu cumprimento (cujo debate se alonga em demasia, como se lê em http://goo.gl/fWeoEZ – acesso em 25/06/2015), é possível – mesmo sem tal critério, abordar o dever de aplicação eficiente e materialmente adequada dos patamares de gasto mínimo em educação, como se lê no artigo publicado pelo Conselheiro Dimas Eduardo Ramalho e pela Procuradora do Ministério Público de Contas Élida Graziane Pinto em http://goo.gl/qo10tv).
[4] Como se lê, por exemplo, em http://goo.gl/WhHg3e, http://goo.gl/j5H2SR e http://goo.gl/PeLzJi (acesso em 25/06/2015).
[5] Sobre isso não divergimos, de modo que é realmente necessária a busca por sua ampliação em porcentual do PIB, a ser alcançado na forma do art. 214, VI da CR/1988 e da meta 20 do PNE.
[6] O risco é de que permaneçam fora da escola ainda em 2016 mais de 2 milhões de crianças e adolescentes na idade de 4 a 17 anos, como se pode ver nas seguintes notícias acessadas em 22/06/2015: http://goo.gl/euE0du e http://goo.gl/EA4hlf
[7] Alguns exemplos de atuação preventiva da Atricon, de Tribunais de Contas e de diversas parcerias entre o Ministério Público de Contas (notadamente nos estados de SP, MG e PR) com o MPF e os respectivos MP’s estaduais, sobretudo, em busca da universalização de acesso ao ensino infantil pré-escolar, podem ser lidos nos seguintes endereços: http://goo.gl/F9JB6s, http://goo.gl/Q4sdQz, http://goo.gl/5wki6k, http://goo.gl/sf7gZp, http://goo.gl/EaFQSo, http://goo.gl/uoHVUJ e http://goo.gl/JmzuCd.
[8] In verbis: “Art. 212. A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino. […]
§ 3º A distribuição dos recursos públicos assegurará prioridade ao atendimento das necessidades do ensino obrigatório, no que se refere a universalização, garantia de padrão de qualidade e equidade, nos termos do plano nacional de educação. […]”
[9] Que assim dispõe: “o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e os orçamentos anuais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios serão formulados de maneira a assegurar a consignação de dotações orçamentárias compatíveis com as diretrizes, metas e estratégias deste PNE e com os respectivos planos de educação, a fim de viabilizar sua plena execução”;
Por Valdecir Fernandes Pascoal e Élida Graziane Pinto
Valdecir Fernandes Pascoal é presidente do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco e da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon). Professor de Direito Financeiro da Escola de Contas Públicas.
Élida Graziane Pinto É procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, associada à Associação do Ministério Público de Defesa da Saúde (AMPASA), Pós-Doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da FGV/RJ e doutora em Direito Administrativo pela UFMG.
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