A essencialidade dos Tribunais de Contas: o que muda com a nova emenda constitucional

Edilberto Pontes

A proposta de emenda constitucional aprovada na Câmara dos Deputados (PEC 39/2022), em 4 de novembro de 2025, altera os artigos 31, §1º, e 75 da Constituição, para qualificar os Tribunais de Contas como instituições permanentes e essenciais ao exercício do controle externo, além de vedar expressamente sua extinção, criação ou instalação.

Essa intervenção pontual no texto constitucional tem efeitos profundos. A emenda rompe com a moldura interpretativa construída pelo Supremo Tribunal Federal, especialmente no julgamento da ADI 5.763/CE, em que se reconheceu a constitucionalidade da extinção do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado do Ceará (TCM-CE), promovida pela Emenda Constitucional estadual nº 92/2017.

Em outros termos: se, até 2025, o STF afirmava que a Constituição “não proíbe a extinção de Tribunais de Contas dos Municípios”, a nova emenda vem justamente inserir essa proibição no próprio texto constitucional, alterando o regime de proteção institucional do controle externo.

Além disso, supera-se definitivamente  interpretações que veem os Tribunais de Contas como órgãos meramente auxiliares do Poder Legislativo, quase apêndices institucionais, positivando o que o STF há muito vem reafirmando, os TCs como órgãos de existência obrigatória, na linha do doutrina de Brito (2005).

O objetivo deste artigo é analisar, sob a perspectiva de um direito constitucional dogmático e comparado, o alcance dessa mudança, seus fundamentos e seus desafios interpretativos.

O conteúdo normativo da emenda constitucional
A emenda modifica dois dispositivos centrais do sistema de controle externo: o artigo 31, §1º, que trata do controle das contas municipais, e o artigo 75, que define o regime jurídico dos Tribunais de Contas.

A nova redação, de acordo com o texto promulgado pela Câmara dos Deputados, é a seguinte:

Art. 31, §1º – O controle externo da Câmara Municipal será exercido com o auxílio dos Tribunais de Contas dos Estados ou do Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, onde houver, vedada sua extinção, criação ou instalação.

Art. 75 (caput) – Os Tribunais de Contas são instituições permanentes, essenciais ao exercício do controle externo, e as normas estabelecidas nesta Seção aplicam-se, no que couber, à organização, composição e fiscalização dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, bem como dos Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios, vedada sua extinção, criação ou instalação.

Do ponto de vista normativo, há três movimentos simultâneos:

1. Afirmação da essencialidade dos Tribunais de Contas ao exercício do controle externo;

2. Reconhecimento de sua permanência como instituições de Estado;

3. Inserção de uma cláusula de vedação à extinção, mas também à criação e instalação de Tribunais ou Conselhos de Contas.

Trata-se, portanto, de uma emenda tanto garantista (impedindo o desmonte de estruturas de controle existentes) quanto contencionista (impedindo a proliferação desordenada de novas cortes de contas).

O regime anterior: a interpretação do STF e a experiência do TCM-CE
Antes da emenda de 2025, o texto constitucional não continha qualquer cláusula expressa vedando a extinção de Tribunais de Contas. A controvérsia girava em torno da interpretação do artigo 31, §§1º e 4º, e do artigo 75 da Constituição.

No caso paradigmático do TCM-CE, a Assembleia Legislativa do Ceará aprovou a Emenda Constitucional estadual nº 92/2017, que extinguiu o Tribunal de Contas dos Municípios, transferindo suas competências para o Tribunal de Contas do Estado.

A emenda foi impugnada na ADI 5.763/CE, na qual se discutia, entre outros pontos, se:

– a Constituição impedia a extinção de um Tribunal de Contas já existente;

– haveria violação à separação de poderes e ao modelo de controle externo previsto no art. 31;

– a emenda estadual seria formalmente viciada

– O STF, por ampla maioria, julgou improcedente a ação, fixando tese no sentido de que:

1. A Constituição Federal não proíbe a extinção de Tribunais de Contas dos Municípios;

2. É possível, mediante Emenda Constitucional estadual, suprimir um Tribunal de Contas e redistribuir suas competências ao Tribunal de Contas do Estado, desde que respeitados os limites formais e materiais da Constituição;

3. A interpretação sistemática do art. 31, §§1º e 4º, não conduz à conclusão de que a existência de Tribunal de Contas dos Municípios, onde instituído, seja irretratável.

4. Esse precedente não se limitou ao Ceará. Ele irradiou efeitos sobre a compreensão do modelo nacional de controle externo, demonstrando que, no regime pré-2025, os Tribunais de Contas dos Municípios eram instituições constitucionalmente possíveis, mas não constitucionalmente obrigatórias.

A emenda de 2025 desloca esse eixo.

A virada de 2025: da permissibilidade à vedação expressa
A grande novidade da emenda não é apenas qualificatória (chamar os Tribunais de Contas de “instituições permanentes e essenciais”) — é normativa e proibitiva. O constituinte derivado de 2025 decide reagir ao espaço de conformação que havia sido reconhecido aos Estados pelo STF.

Na prática, a nova redação:

– Retira dos estados (e, por simetria, dos municípios) a margem de manobra para extinguir Tribunais de Contas já existentes;

– Congela o mapa institucional: não apenas veda novas extinções, como também impossibilita a criação ou instalação de novos Tribunais ou Conselhos de Contas;

– Estabelece, enfim, um ponto de cristalização constitucional: os Tribunais de Contas que existem na data da emenda passam a ser entidades constitucionalmente protegidas; os que não existem não poderão mais ser criados.

Em termos de dogmática constitucional, a Emenda de 2025 é uma típica resposta do constituinte derivado a uma interpretação consolidada do Supremo Tribunal Federal. O legislador constituinte derivado percebe o risco de:

– desmonte progressivo de estruturas de controle (pela via da extinção); ou

– multiplicação politicamente motivada de cortes de contas (pela criação de novos órgãos para acomodar forças locais),

e decide travar ambas as portas ao mesmo tempo.

Essencialidade, permanência e a categoria dos órgãos de garantia
Ao afirmar no caput do artigo 75 que os Tribunais de Contas são “instituições permanentes, essenciais ao exercício do controle externo”, o constituinte derivado aproxima seu regime jurídico daquele conferido a outros órgãos de garantia da ordem constitucional, como:

– o Ministério Público (artigo, 127 “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado”);

– a Defensoria Pública (artigo 134, “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado”).

A essencialidade tem o efeito retórico e simbólico, mas vai além disso. Ela sugere, pelo menos, três consequências:

1. Blindagem institucional reforçada
A essencialidade ao controle externo funciona como um argumento estrutural contra iniciativas de enfraquecimento funcional, captura política ou esvaziamento orçamentário dos Tribunais de Contas.

2. Leitura restritiva de medidas de reforma institucional
Mudanças na organização interna, composição, carreira e funcionamento dos Tribunais de Contas precisarão ser compatíveis com esse novo núcleo essencial, sob pena de inconstitucionalidade material.

3. Reconhecimento de um “estatuto constitucional do controle”
A emenda consolida a ideia – já referida pelo STF em diversas ocasiões, mas agora expressamente positivada – de que o controle externo não é mero apêndice da função legislativa, mas função de Estado, exercida em regime de colaboração entre o Parlamento e os Tribunais de Contas.

Sob a perspectiva de teoria constitucional, os Tribunais de Contas aproximam-se cada vez mais do conceito de “instituições de integridade” (integrity institutions), como defendido na literatura comparada (Ackerman, 2000), com papel de contenção de abusos e promoção da accountability.

Impactos federativos e redesenho do controle externo
Do ponto de vista federativo, a emenda de 2025 tem um duplo impacto:

1. Reduz a autonomia organizatória dos estados
Se antes o STF havia reconhecido que a extinção do TCM-CE era decisão legítima do poder constituinte estadual, agora o texto federal passa a proibir esse tipo de escolha. A autonomia estadual continua ampla, mas deixa de abranger a decisão sobre existir ou não existir Tribunal de Contas.

2. Uniformiza o núcleo institucional do controle externo
Todos os entes federativos ficam vinculados à existência de um Tribunal de Contas como órgão permanente e essencial. A variabilidade passa a se dar dentro do modelo (na organização interna, especializações, câmaras, digitalização, etc.), não sobre o modelo (existência ou não de corte de contas).

É possível ver, aqui, um movimento de “federalismo cooperativo da integridade”: o constituinte federal define um piso mínimo de institucionalidade do controle, a partir do qual os entes federados podem inovar, mas não regredir.

A cláusula ‘vedada sua extinção, criação ou instalação’: questões interpretativas
A fórmula utilizada pelo constituinte derivado — “vedada sua extinção, criação ou instalação” — suscita algumas questões relevantes:

7.1. Estabilização integral do mapa de Tribunais de Contas?

A interpretação literal indica que, após a emenda:

– Tribunais de Contas existentes não podem ser extintos;

– Tribunais ou Conselhos de Contas inexistentes não podem ser criados nem instalados.

Isso significa que o modelo institucional fica congelado no tempo. Estados que extinguiram seus Tribunais de Contas de Municípios antes de 2025 (como o caso do Ceará, quanto ao TCM-CE, ou o Amazonas em relação a órgão municipal de contas) permanecem com o desenho atual; mas a partir da emenda, nenhuma nova extinção ou criação será possível.

Trata-se de uma solução de compromisso: o constituinte reconhece o passado (inclusive o resultado da ADI 5.763), mas congela o futuro.

A chave interpretativa aqui é distinguir entre:

– “extinção institucional”, que atinge o núcleo do órgão e é vedada; e

– “reconfiguração organizacional”, que pode ser admitida, desde que não desfigure a instituição nem comprometa sua função de controle.

7.2. A vedação à criação pode ser mitigada?

Outro ponto delicado é a vedação à criação ou instalação de novos Tribunais ou Conselhos de Contas.

– Em tese, um Estado que hoje não possua Tribunal de Contas dos Municípios não poderá mais criá-lo.

– Estados com realidades territoriais extremas, com baixa capilaridade administrativa e enormes desafios de fiscalização, podem ler essa vedação como uma rigidez excessiva:

Do ponto de vista hermenêutico, será tentador argumentar que a vedação se orienta contra a “proliferação oportunista” de órgãos, não contra soluções de desenho institucional justificadas por critérios técnicos. Mas o texto é muito categórico. A tendência é que o STF adote uma interpretação restritiva do poder de criação, em respeito à literalidade da emenda.

A superação implícita da orientação da ADI 5.763
Do ponto de vista da teoria dos precedentes, é importante registrar que a Emenda de 2025 não revoga a ADI 5.763 — precedentes jurisdicionais não são “revogados”, apenas perdem seu campo de incidência quando o parâmetro normativo se altera.

O que ocorre aqui é:

1. A ADI 5.763 interpretou a Constituição tal como era antes de 2025, concluindo pela possibilidade de extinção de Tribunais de Contas dos Municípios.

2. O constituinte derivado, em 2025, modifica o próprio parâmetro constitucional, inscrevendo no texto uma vedação que não existia.

3. A partir da Emenda, o raciocínio da ADI 5.763 torna-se historicamente importante, mas normativamente superado em relação a novos casos.

A doutrina constitucional costuma chamar esse fenômeno de “mutação por emenda”: não se trata apenas de reinterpretação judicial, mas de verdadeira reconfiguração do fundamento normativo, o que Richard Albert denomina de emenda constitucional corretiva (Albert, 2018).

Conclusão: a constitucionalização da integridade financeira do Estado
A Emenda Constitucional de 4 de novembro de 2025 pode ser lida, em chave mais ampla, como parte de um movimento de constitucionalização da integridade financeira e administrativa do Estado brasileiro.

Ao:

– Expressamente reconhecer os Tribunais de Contas como instituições permanentes e essenciais;

– torná-los imunes à extinção, e

– impedir a criação oportunista de novas cortes,

o constituinte derivado reforça a ideia de que o controle externo é componente estrutural do Estado Democrático de Direito, e não simples opção de desenho administrativo.

A Emenda estabiliza o tabuleiro institucional, o que é condição prévia para qualquer agenda séria de reforma, profissionalização e avaliação de desempenho institucional. A agenda de modernização dos Tribunais de Contas, compatibilizando-se com as necessidades da contemporaneidade adquire ainda mais relevo com a elevação de seu status constitucional.

Em síntese:

– sob o regime anterior, os Tribunais de Contas dos Municípios eram instituições possíveis e disponíveis à escolha política dos estados;

– com a Emenda de 2025, os Tribunais de Contas, em todas as suas variantes, passam a ser instituições necessárias, permanentes e protegidas, componentes de um núcleo duro de integridade constitucional. Se para os Tribunais de Contas dos Estados e para o próprio TCU a Emenda pode ser interpretada também pelo efeito simbólico e elucidativo, nos termos de Albert (2018), afastando análises que os caracterizem como meros auxiliares do Poder Legislativo, para os TCMs é proteção fundamental.

Do ponto de vista do constitucionalismo contemporâneo, trata-se, portanto, de um movimento coerente com as tendências internacionais de fortalecimento das instituições de integridade, em que a democracia não se protege apenas pelo voto periódico, mas por organismos estáveis, independentes e tecnicamente qualificados, capazes de vigiar o uso do dinheiro público em nome da sociedade. Uma excelente notícia que se contrapõe a movimentos também contemporâneos de erosão institucional e populismo constituinte em tantos países, como, infelizmente, assistimos no presente (Lima, 2024).

Edilberto Pontes é conselheiro corregedor do TCE Ceará e presidente do IRB