Quando ingressei no Ministério Público de Contas, ouvi um episódio inusitado. Referiu-me um antigo colega que, em determinado momento (e lá se iam longos anos), foi instado a emitir parecer em processo no qual se examinavam despesas de uma certa “conta secreta”. O surreal é que, a pretexto de se guardar sigilo quanto ao conteúdo (o qual, disse, também não se justificava), os documentos respectivos estavam sob lacre, o que impediria o próprio agente ministerial de examinar a matéria e dizer a respeito. Claro, não se submeteu àquilo.
A narrativa serve para ilustrar situações como a antiga prática, por vezes ainda encontrada, de se manter à margem do controle atos de receita e de despesa que deveriam ser públicos, além de confirmar a máxima de que não se controla o que não se conhece.
Registramos, em maio/2022, os 10 anos de vigência do marco da transparência no Brasil (a Lei Federal 12.527/2011), que trouxe inegáveis avanços em relação ao dever do Estado de informar e ao direito fundamental do cidadão de se informar e de ser informado.
Todavia, a opacidade parece continuar a seduzir agentes que, desconsiderando uma premissa básica (a de que a informação pública não é “propriedade” sua), deixam na sombra dados que deveriam estar à luz do sol (o melhor desinfetante, disse Louis Brandeis há muitas décadas).
E, diferentemente de um passado não muito distante, as ferramentas tecnológicas hoje existentes (amplamente acessíveis, como regra, a todas as estruturas estatais) viabilizam a mais ampla difusão dos conteúdos. Foi-se o tempo em que para, formalmente, se pretender dar cumprimento ao princípio constitucional da publicidade, veiculava-se um protocolar extrato no diário oficial (e, ainda assim, com custos proibitivos).
Mas uma limitação ainda não superada é a linguagem adotada. Nem sempre clara, objetiva e didática, acaba impondo dificuldades de interpretação aos usuários. Além do conteúdo, a forma também pode ser um obstáculo. Arquivos em formato fechado impedem a reprodução e o cruzamento das informações, por exemplo.
É nesse contexto que os Tribunais de Contas brasileiros lançam, neste mês, o Programa Nacional de Transparência Pública, no intuito de mobilizar as próprias instituições de controle, os agentes públicos e a sociedade pela concretização do direito fundamental à informação. E de avaliar, nos respectivos portais, a chamada transparência ativa de Poderes e órgãos.
Também chama à atenção o crescimento de atos contrários à liberdade de expressão, em especial os dirigidos à imprensa. De acordo com o Relatório da Violência contra Jornalistas divulgado em janeiro deste ano, a censura foi considerada, em 2021, a principal forma de agravo contra a liberdade de imprensa, seguida da sua descredibilização.
A obscuridade repercute de forma ainda mais negativa nos dias atuais. Em meio à rápida propagação das chamadas fake news (embora, como já se disse, “se é fake não é news”), os dados oferecidos de forma isenta pelos órgãos públicos são especialmente importantes para o exercício da democracia. E, como se sabe, sem controle não há democracia, e sem democracia não há controle. Aliás, outra frase tão antiga quanto verdadeira nos lembra que “democracias morrem atrás de portas fechadas”.
E por que essa crescente desinformação não tem gerado maiores preocupações? Talvez porque, num contexto em que tudo parece possível, seja mais fácil aceitar o conforto de argumentos facilmente sedutores aos desejos ou às convicções. Mas a verdade é que a informação é pressuposto intrínseco do exercício de direitos políticos e a única opção segura quando se trata de cidadania. De fato, a assimetria informacional pode afetar as escolhas. E não há escolha efetivamente livre quando não existe acesso ao conhecimento.
Ao mesmo tempo, a transparência permite o engajamento cívico da população na formulação, no acompanhamento e na avaliação das políticas públicas (vide a recente inovação no art. 193 da Constituição), inclusive sob a forma de reivindicações, sugestões, protestos e até denúncias.
De outra parte, o acesso à informação pode ainda ser visto como um aliado do administrador público, que, premido de recursos, se coloca na posição de priorizar algumas demandas, em detrimento de outras (não raro se deparando com as chamadas “escolhas trágicas”). Mas, também aqui, a transparência é o instrumento pelo qual poderá justificar à população as opções efetivadas e a sua motivação, fazendo dela um aliado.
Parece fácil concluir que muitas das nossas insatisfações ligadas à política, à condução da economia, à prestação de serviços públicos, entre outros, passam necessariamente pelo exercício da cidadania, o que só é possível quando se tem conhecimento. A verdade é que a nossa própria vida está intimamente relacionada com o acesso à informação. Enfim, conforme a precisa e sempre repetida síntese de Norberto Bobbio, “a Administração Pública deve estar em público”.
Cezar Miola – presidente da Atricon.