Bruno Dantas
Cada renegociação passa por múltiplos olhares – técnicos, jurídicos e econômicos – assegurando que a decisão final não seja produto de vontade isolada, mas fruto de deliberação colegiada
No Brasil, a trajetória de grandes projetos de infraestrutura sempre esbarrou em um dilema persistente: como conciliar a rigidez dos contratos públicos de longo prazo com a imprevisibilidade do ambiente econômico e regulatório?
Concessões de rodovias, ferrovias, saneamento básico e energia elétrica, firmadas para vigorar por décadas, inevitavelmente enfrentam choques externos, mudanças tecnológicas, revisões regulatórias e, mais recentemente, impactos climáticos. Não há contrato que sobreviva incólume a tanto.
A teoria dos contratos incompletos, laureada com o Nobel de Economia em 2016, mostra que toda pactuação de longo prazo carrega lacunas inevitáveis. Tais lacunas só podem ser preenchidas por mecanismos adaptativos. O ordenamento brasileiro reconheceu isso: o art. 9º da Lei nº 8.987/1995 consagra o direito ao reequilíbrio econômico-financeiro, e a Lei nº 11.079/2004 estabelece a repartição de riscos como eixo da governança contratual.
O desafio, porém, está em como introduzir essas adaptações com técnica e celeridade, sem abrir espaço para captura ou favorecimento indevido. Durante anos, a ausência de canais institucionais claros transformou cada revisão em uma disputa judicial ou em longos processos administrativos. O resultado foi a paralisia de obras, o aumento de custos e a deterioração de serviços essenciais.
Em tempos de criminalização da atividade pública, o problema se agravou. Gestores e reguladores passaram a agir de forma defensiva. Qualquer ajuste contratual podia ser interpretado como irregularidade. Soluções criativas foram evitadas, mesmo quando tecnicamente necessárias e o “apagão das canetas” virou regra de norte a sul do país.
A criação da SecexConsenso e das Comissões de Solução Consensual no Tribunal de Contas da União (TCU) representou uma resposta a esse impasse. O TCU deixou de atuar apenas como julgador a posteriori para assumir também o papel de mediador em renegociações complexas.
Essa evolução não é acidental. A Constituição atribui ao TCU funções singulares: apreciar previamente a modelagem de concessões e PPPs (art. 71, IV) e fiscalizar sua execução (art. 71, II). O mesmo órgão que chancela a racionalidade jurídica e econômica inicial é também aquele mais apto a acompanhar, com legitimidade, os ajustes de percurso.
A governança da SecexConsenso foi desenhada para blindar a integridade do processo.
As comissões contam com dois auditores: um da SecexConsenso, especializado em mediação, e outro da unidade técnica responsável pelo setor regulado. O parecer do Ministério Público é obrigatório. Nenhum termo de solução consensual avança sem aprovação expressa da agência reguladora, do ministério setorial, da AGU e de ao menos uma unidade técnica do TCU.
Por fim, o Plenário homologa o acordo, conferindo-lhe legalidade, legitimidade e economicidade. Essa homologação vincula a Corte a não abrir novos processos sobre o mesmo objeto, salvo se houver prova de dolo ou fraude.
Ao observar experiências internacionais, a especificidade brasileira fica mais nítida, mas não isolada.
Na França, o Conseil d’État exerce função consultiva e de chancela prévia das modelagens jurídicas e econômicas, além de atuar na mediação de controvérsias. A Cour des Comptes, por sua vez, limita-se ao controle ex post.
Essa separação confirma a racionalidade do arranjo brasileiro: o órgão que avalia imparcialmente a modelagem é também o mais apto a conduzir soluções consensuais.
Já em países em que os tribunais de contas atuam apenas ex post, é inaplicável buscar experiência semelhante. Esses órgãos não chancelam modelagens, limitando-se a apurar responsabilidades após a execução.
O legislador brasileiro fez opção distinta ao atribuir ao TCU papel consultivo prévio. Essa escolha abriu espaço para que a mediação também fosse confiada à Corte.
O contraste é revelador. Em sistemas restritos ao ex post, os controladores atuam quando o dano já ocorreu. No Brasil, o modelo permite antecipar riscos e reduzir incertezas antes que se convertam em litígios custosos.
Essa antecipação fortalece o controle. O TCU, ao identificar previamente as premissas de um acordo, assegura que eventuais recomposições contratuais tenham base técnica e econômica consistente.
Os efeitos são diretos sobre a economia. Renegociações previsíveis reduzem custos de transação, diminuem o risco regulatório e barateiam o custo de capital.
Investidores sabem que haverá instância institucionalizada para dirimir disputas, e não arenas fragmentadas sujeitas a ciclos políticos.
Para o Estado, o ganho é duplo. Preserva-se o interesse público com maior rigor e evitam-se paralisias de projetos estratégicos. Para a sociedade, há garantia de que ajustes complexos não serão conduzidos por órgãos frágeis, expostos à insegurança jurídica.
Mais do que eficiência, há aqui um ganho democrático. Cada renegociação passa por múltiplos olhares – técnicos, jurídicos e econômicos – assegurando que a decisão final não seja produto de vontade isolada, mas fruto de deliberação colegiada.
É nesse sentido que se concretiza a ideia de “razão pública”, formulada por John Rawls: consensos legítimos nascem quando instituições traduzem conflitos em procedimentos transparentes de deliberação.
O Brasil oferece, assim, contribuição singular ao debate internacional. Ao reconhecer o conflito como inevitável, não o nega, mas o reinscreve em uma moldura institucional capaz de gerar previsibilidade e confiança.
Ao inovar com a consensualidade, o TCU não fragiliza o controle. Eleva-o a um novo patamar, no qual a confiança se torna o ativo mais valioso da infraestrutura e, o controle externo, um vetor de desenvolvimento econômico.
Bruno Dantas é ministro do TCU e ex-presidente da Corte
Artigo originalmente publicado no Valor Econômico em 25.08.2025