No princípio, diz o Gênesis, falávamos apenas uma língua. Eis que passado o Dilúvio, inventamos de brincar de Deus. Ignoramos a Sua vontade, caímos da Torre e, desde então, com a babel de línguas, a comunicação e o entendimento se transformaram em desafios para a humanidade.
O mundo parece experimentar uma nova Babel: negação de fatos, rejeição da história, aversão à ciência, desinformação propagada por notícias falsas e teorias da conspiração, incapacidade de compreensão, tudo amplificado por algoritmos tendenciosos que obstruem o debate público e pessoal.
Neste contexto distópico, a Democracia e as suas Instituições viram alvos. Já se disse que a primeira vítima de uma guerra é a verdade. De fato. Basta atentarmos para as informações contraditórias que chegam dos conflitos do momento: Rússia/Ucrânia e Hamas/Israel. Pois bem. A atual falta de compromisso com a verdade factual é típica de momentos belicosos. Hoje, qualquer “teoria” divulgada nas redes “sociais”, por mais absurda que soe, rapidamente encontra defensores fervorosos. Um estudo do MIT, publicado na Science, destaca que notícias falsas circulam 70% mais rápido que as verdadeiras, em “velocidade de sombra”. Isso nos remete a fenômenos como “Brexit”, “QAnon”, terraplanistas, movimentos antivacina e por aí vai.
Diante deste grave panorama, foco nas instituições públicas, mirando os desafios da comunicação social dos Tribunais de Contas. Explicar o que são esses órgãos, o que fazem, o sentido e o alcance de suas decisões, porque eles são importantes para o cidadão e para a democracia, é sempre um desafio. Lembremo-nos de que apenas 17% dos brasileiros possuem uma compreensão básica de sua função (Ibope). Sem falar que esses órgãos lidam com temas técnicos complexos, relacionados às áreas do direito, da economia, da gestão e das finanças públicas (tratei desse último aspecto no artigo “O Direito Financeiro e as Matrioskas” – JC, de 14/5/23).
Aprimorar a comunicação social, portanto, deve continuar sendo agenda prioritária para esses órgãos. Com esse objetivo, no “I Congresso Nacional de Comunicação dos Tribunais de Contas”, idealizado pela Atricon, ocorrido no TCE-SC, em fevereiro deste ano, foram estipuladas “Diretrizes de Comunicação Social” para essas instituições, inspiradas nos princípios da comunicação da “ABC Pública” (ver as diretrizes: bit.ly/Dcstc). Em poucas palavras: a comunicação social pressupõe o uso de meios plurais e linguagem simples, que garantam pleno acesso e compreensão da informação pelos diferentes segmentos da sociedade.
Essas diretrizes estão alinhadas ao movimento global pela linguagem simples (Plain Language). Por aqui, em meio a algumas boas práticas, avança na Câmara o PL 6.256/2019, que institui a Política Nacional de Linguagem Simples, cujo conteúdo, em sintonia com o princípio da transparência e de leis como a LAI (Lei de Acesso à Informação) e a LRF, é um manifesto em defesa da boa informação pública. Em síntese, ela clama: seja claro; escreva na ordem direta; prefira frases breves com palavras comuns; explique os termos técnicos; evite repetições; fuja dos clichês e dos estrangeirismos; verbos e substantivos são, em regra, melhores do que advérbios e adjetivos. Embora endereçada às estruturas de comunicação do setor público, os princípios assinalados na proposta, respeitadas as naturais tecnicidades, a formação e os estilos literários de cada agente público, devem ser aplicados à elaboração de documentos, pareceres e decisões, nos mais variados processos públicos.
Há, todavia, um outro requisito fundamental para a boa comunicação: conhecer o destinatário das informações. Nicolau da Rocha Cavalcanti, tratando dos desafios da comunicação do STF (Estadão, 11/10), faz um alerta que se aplica a todas as instituições: “A população brasileira mudou nas últimas décadas. E essa mudança não foi no sentido que uma elite intelectual e urbana talvez imaginasse. Houve o florescimento de novas dinâmicas familiares e sociais, de novas religiosidades, de novas modalidades de trabalho, de novas percepções do papel do Estado. O ano de 2013 talvez possa ser lido como o desabrochar deste novo Brasil, ainda a ser compreendido. A legitimação discursiva não pode se resumir a um diálogo com os setores mais progressistas e intelectualizados. É preciso revisitar nossas percepções sobre o que é o Brasil”.
Não basta informar, é preciso saber comunicar. Neste quesito, devemos reconhecer, ainda, o indispensável trabalho da imprensa profissional, que prima pela apuração rigorosa e isenta dos fatos. No aperfeiçoamento da comunicação com a sociedade, os veículos jornalísticos são interlocutores essenciais.
Enfim, conhecer o cidadão, trazê-lo para perto da verdade fornecendo informações claras e transparentes, é compromisso republicano e democrático. É o oposto de babel. E como sabiamente observou Da Vinci: “A simplicidade é o último grau de sofisticação”. Simples assim!
PS: Duas sugestões de leitura para nos inspirar: “Seis Propostas para o Próximo Milênio”, de Ítalo Calvino, e o artigo “A Revolução da Brevidade”, do Presidente do STF Luís Roberto Barroso.
Valdecir Pascoal – Conselheiro do TCE-PE