Graciliano Ramos e a questão tributária

Valdecir Pascoal

Como prometido, hoje destacamos um trecho marcante dos Relatórios de Gestão do Prefeito Graciliano Ramos sobre a QUESTÃO TRIBUTÁRIA e as RENÚNCIAS FISCAIS no município de Palmeira dos Índios, naqueles idos de 1928-30. Vimos na coluna anterior que os dois Relatórios são documentos históricos, exemplos de conduta republicana e uma inspiração permanente para todo gestor público. Portanto, qualquer semelhança com as discussões ora travadas no Brasil não é mera coincidência. É o que veremos.

No Relatório de 1930, escreveu Graciliano:

— No orçamento do ano passado houve supressão de várias taxas que existiam em 1928. A receita, entretanto, calculada em 68:850$000, atingiu 96:924$985. E não empreguei rigores excessivos. Fiz apenas isto: extingui favores largamente concedidos a pessoas que não precisavam deles e pus termo a extorsões que afligiam os matutos de pequeno valor, ordinariamente raspados, escorchados, esbrugados pelos exatores.

Nesta passagem, chama a atenção o cuidado do Prefeito com o tema da justiça tributária. Quem ganha mais deve pagar mais. É o que se chama progressividade tributária. Pois bem, para garantir essa justiça, o Prefeito agiu em duas frentes: extinguindo tributos para os cidadãos de menor renda e acabando com os privilégios fiscais injustificados. E qual o efeito dessas medidas, para além da questão da equidade fiscal? O forte aumento da arrecadação, de modo a criar um novo espaço orçamentário para fazer frente às imensas demandas sociais.

Nada mais atual no Brasil de hoje, em que se discute o tamanho da carga tributária, a importância dos tributos para o equilíbrio fiscal sustentável e a necessidade de reavaliação das suas renúncias, tudo isso no contexto da da Reforma Tributária já aprovada – EC 132 (2023).

Nessa série sobre Graciliano ainda voltarei ao tema da carga tributária e dos desafios de um Estado probo e eficiente na aplicação dessas receitas. Por hora, enfrento as renúncias (“gastos tributários”). Ninguém ignora a importância, para o desenvolvimento de um país, das políticas públicas concebidas por meio de incentivos fiscais. Elas servem para fomentar setores estratégicos da economia, gerando renda, empregos e que, no limite, podem até aumentar a arrecadação e o PIB. Ocorre que, desde as Capitanias Hereditárias, quando são inauguradas em Pindorama, as renúncias fiscais são marcadas, em larga medida, pela cultura da opacidade. É comum faltar transparência dos dados, comprovação do real custo-benefício e avaliação periódica da efetividade. Para se ter uma ideia da dimensão financeira das renúncias, elas somavam 2% do PIB, em 2002; hoje, alcançam 4,5%, chegando a R$500 bilhões na União e R$200 bilhões só de renúncia de ICMS nos Estados, indicando, neste último caso, uma guerra fiscal fratricida.

Há, no entanto, um novo cenário constitucional em relação ao tema. Depois da LRF ter instituído, em 2000, requisitos e filtros mais rígidos para concessão de renúncias, a EC 109 (2021) impõe à União uma diminuição gradual das renúncias, que não poderão ultrapassar 2% do PIB até 2029. Na mesma linha, a Reforma Tributária (EC 132), em relação a Estados (DF) e Municípios, veda a concessão de incentivos fiscais para o novo Imposto Sobre Bens e Serviços – IBS (substituirá ICMS e ISS), excetuando-se os já contemplados na Constituição. Vale lembrar que esse incremento da receita é essencial para a efetividade do novo arcabouço fiscal, que, no atual contexto de rigidez das despesas, depende sobremaneira dos tributos.

Por outro lado, visando reduzir desigualdades e incentivar, por meio de subvenções econômicas, setores da economia que invistam em infraestrutura, tecnologia e meio ambiente, assim como para compensar esses segmentos pelo fim das renúncias, a mesma EC 132 criou fundos especiais, a exemplo do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR), com vigência até 2043, e do Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais, até 2032. Sob o aspecto orçamentário, tem-se que uma parte do que vinha sendo renunciado passará a integrar o orçamento público nos dois lados, receita e despesa, o que pode resultar em maior transparência, debate social e melhor controle.

A propósito, os Tribunais de Contas (TCs) devem estar atentos a este novo cenário. Em relação aos incentivos concedidos por meio dos novos fundos, a tradição do controle das despesas prenuncia um caminho menos difícil. Destacaria apenas que esse olhar deve ultrapassar a legalidade formal e aprofundar no exame da eficiência dos gastos, o que já vem sendo uma marca desses órgãos. Bem mais desafiador continuará sendo o controle sobre as renúncias fiscais remanescentes. Desde 2016 que a Atricon aprova diretrizes para induzir os TCs a atuarem de modo mais efetivo sobre as receitas e suas renúncias, como prevê a CF. É preciso reconhecer que houve avanços neste controle, mas é uma atuação que deve ser sistêmica e permanente.

Sugestão: a realização, por todos os TCs, com a colaboração dos próprios gestores públicos, de uma auditoria operacional nacional para mapear, dar máxima transparência e avaliar os benefícios fiscais vigentes no país. Seria um passo significativo, no mais republicano estilo Graciliano.

* Valdecir Pascoal – Presidente do TCE-PE