A independência de quem fiscaliza não pode ignorar a autonomia do fiscalizado.
Por Doris de Miranda Coutinho*
Há algum tempo vem sendo reprisado, neste espaço, um tema de essencial importância em termos de controle das contas públicas no Brasil: deve haver preocupação em vigiar os vigilantes? E a quem caberia essa tarefa?
Estas questões, embora antigas, permanecem inquietando a sociedade, tendo tomado contornos alarmantes, recentemente, devido à sucessão de escândalos envolvendo membros das cortes de contas Brasil afora, com destaque para os cinco integrantes do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro, implicados na ramificação carioca da operação Lava-Jato e, por conta disso, afastados provisoriamente dos respectivos cargos. Mas as suspeitas, há tempos, não se limitam a tal caso. Foi, apenas, o mais rumoroso.
Assim, a angústia, expressada em descrença da coletividade em relação aos tribunais de contas brasileiros, encontrou um estopim para fazer eclodir os movimentos que já existiam, conquanto timidamente, de reforma da estrutura institucional e funcionamento dessas Cortes tão importantes à república.
Diante disso e da apresentação no Parlamento Nacional, das Propostas de Emenda à Constituição nº 329/2013 (Câmara dos Deputados) e 22/2017 (Senado Federal), que são representativas da (boa) intenção de mudança, e apresentam projetos específicos de futuro para os Tribunais de Contas, recapitula-se a questão.
Indubitavelmente, o modelo de controle externo das finanças públicas desenhado pela Carta de 1988, não obstante tenha apresentado evoluções consideráveis, revela deficiências e disfunções gravíssimas que dificultam a sua atuação e justificam o sentimento de desconfiança. O aprimoramento dessas instituições, assim, é uma exigência natural decorrente da necessidade de corresponder às expectativas que a Constituição e a própria sociedade depositam nelas. Ninguém deveria se opor à evolução, sendo ela boa para todos.
Mas isso não exclui a também necessária discussão quanto ao modo como a mudança deve ser operada. Neste ponto, as citadas propostas apresentam mais convergências do que divergências. Obviamente, as discordâncias não refletem lados opostos de um cabo-de-guerra. Apenas partem de bases distintas sobre as quais a “instituição” tribunal de contas poderá se apoiar para sair do atoleiro moral.
Do lado das convergências, está o repensar quanto aos critérios de composição dos membros – conselheiros e ministros – desses tribunais, de modo a conferir a imparcialidade e autonomia que se espera de um organismo incumbido de fazer o monitoramento e juízo fiscal. É igualmente convergente o reclame quanto a essencialidade de visibilidade, integridade e segurança jurídica à atividade de controle externo, ainda distante dos padrões de transparência e efetividade.
Na perspectiva dos dissensos, dois pontos precisam ser desatados, e aqui antecipa-se possíveis soluções para cada um deles.
Primeiro, a reforma deve ser completa, tomando-se em consideração a corte de contas como instituição republicana, de horizonte constitucional e, portanto, não pode deixar-se de incluir neste projeto o próprio Tribunal de Contas da União, especialmente quanto à forma de indicação dos ministros, eivada de semelhantes deformidades, como se prevê na PEC 329/2013, pois pau que bate em Chico, bate em Francisco. Expressão tão em voga!
Segundo, a submissão dos órgãos de contas ao controle disciplinar do Conselho Nacional de Justiça é inviável. Embora a proposta seja atraente, uma vez que o tribunal de contas estaria melhor alocado se compusesse a estrutura do Poder Judiciário, como ocorre em outros países, a realidade (constitucional) é implacável: o constituinte brasileiro optou por não inserir o tribunal neste Poder, e nem em qualquer outro, desenhando-o como instituição independente. Como o fez com o Ministério Público. Entre eles, sem ser um deles. Portanto, é a própria autonomia dos poderes que inviabiliza a ideia de que um órgão administrativo interno da estrutura judiciária exerça o controle correicional de quem não integra este mesmo esqueleto.
Se a Constituição tivesse menosprezado as implicações que decorrem da separação dos poderes, e a distinção evidente que existe entre a jurisdição de contas e a jurisdição comum, haveria, seguramente, estabelecido diversos outros pontos de semelhança entre ambas, além do verbo “julgar”. De resto, a extensão das garantias, prerrogativas, impedimentos e vantagens dos magistrados aos conselheiros e ministros de contas não exclui as particularidades de cada atividade. Tampouco permite concluir que sejam carreiras iguais para fins de controle disciplinar. Falta competência constitucional, além da óbvia falta de expertise nas duas vias, para que um julgue e avalie a atividade funcional do outro, já que o colegiado do CNJ incluiria, também, representante dos tribunais de contas, o que, seguramente, não contaria com a simpatia dos juízes de direito de carreira, que reiteradas vezes demonstram rechaço até mesmo aos ingressos pelo quinto constitucional, oriundos da advocacia e ministério público. Sem mencionar que, dentre as atribuições do Conselho, vão muito além dos aspectos disciplinares.
Não se trata de forçar a banda do cabo-de-guerra que representa o status quo de descontrole e disfunção. Ser independente não implica ser incontrolável. Pelo contrário. A independência é indutora de fiscalização. Mas responder à questão sobre quem manterá os olhos bem abertos sob os controladores, não pode ignorar a autonomia dos observados.
*Doris de Miranda Coutinho é Conselheira do Tribunal de Contas do Estado do Tocantins, Doutoranda em Direito Constitucional na Universidade de Buenos Aires. Especialista em Política e Estratégia e em Gestão Pública com ênfase em controle externo. Membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros.