Uma controvérsia importante tem reunido, em lados variados, entes políticos, professores, juristas e cidadãos preocupados com a valorização da educação pública — trata-se da atualização do piso nacional do magistério público, instituído pela Lei n° 11.738/2008 [1]. Mesmo após a confirmação da constitucionalidade, pelo Supremo Tribunal Federal, da atualização do piso por Portaria do Ministério da Educação (ADI 4.848), a discussão ressurgiu devido à revogação da Lei n° 11.494/2007, na qual constava o critério de definição do valor anual mínimo por aluno [2].
O debate é instigante porque envolve questões variadas: a) a complexa repartição de responsabilidades federativas pelo custeio de políticas públicas; b) a prioridade (ou falta de) que se confere à educação; c) o acoplamento problemático entre os objetivos de política fiscal e os direitos prestacionais; d) disputas jurídicas sobre a interpretação das regras aplicáveis, levando não raras vezes a um cenário de intensa judicialização e consequentes impasses, indesejados para a boa execução da política pública.
No que se refere às políticas públicas educacionais, possivelmente o arranjo institucional brasileiro seja no mundo um dos mais complexos e refinados mecanismos constitucionais de colaboração financeira federativa. O compartilhamento de responsabilidades entre os entes da federação está na base da organização da educação brasileira (CF, artigo 211), sendo o principal mecanismo de financiamento da educação básica, o Fundeb (artigo 212-A), típico arranjo federal de solidariedade para o custeio de uma política pública. O compartilhamento de atribuições e responsabilidades é sempre complexo e gera inconformidades, sobretudo no que se refere à distribuição das receitas e despesas [3].
O piso nacional do magistério público é um típico caso de fixação, em lei federal, de obrigação a ser cumprida pelos demais entes. Versa sobre a regulamentação (insuficiente, já que a Constituição estatui o piso para os profissionais da educação pública, e não apenas para o magistério) de uma regra impropriamente incluída entre os princípios constitucionais do ensino, na medida em que princípio é a valorização dos profissionais da educação escolar (artigo 206, V), sendo o piso um dos meios de sua desificação. Isso, todavia, não afasta a importância e força normativa constitucional do preceito, de resto já bem delimitada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, notadamente nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade 4.167, julgada no sentido da constitucionalidade do piso, “de modo a utilizá-lo como mecanismo de fomento ao sistema educacional e de valorização profissional, e não apenas como instrumento de proteção mínima ao trabalhador” [4], e 4.848, que fixou tese pela adequação à Constituição da forma de atualização do piso prevista em norma federal [5].
Importante perceber que o piso nacional do magistério público não pode ser enxergado como uma criação insulada, imposta pela União. Trata-se de mecanismo de financiamento coordenado da educação pública, embora com participação percentual inferior por parte do ente central. É obrigação que não caracteriza cortesia com o chapéu alheio, como se diz na linguagem popular, pois há mecanismos cooperativos de financiamento. Com efeito, a organização do financiamento da educação é baseada principalmente na a) constituição de um fundo, com participação de todos os entes, para financiar grande parte da educação básica; b) a maior parte desses recursos (70%) deve se destinar ao pagamento dos profissionais da educação; c) a distribuição dos recursos efetua-se por matrícula, mecanismo que assegura equidade e justiça alocativa (recebe quem presta o serviço).
Sobre a prioridade que se confere à educação (ou falta de), em certos momentos o debate sobre a valorização dos profissionais da educação básica parece desviar-se desse norte. Desde a sua criação o piso do magistério sofre resistências. Foi proposta ADI para questionar a sua constitucionalidade (4.167). Depois, para problematizar o critério de atualização (4.848), e, ainda, há repercussão geral reconhecida no Tema 1.218, sobre o reflexo do piso na carreira do magistério.
O piso possui uma lógica desde a sua origem, e seu bom percurso somente é possível caso todos os entes federados planejem a política educacional com a racionalidade desejada, priorizando realmente a educação, e não interesses meramente políticos ou corporativos. Estabelecido o piso e prevista a atualização pelo valor anual mínimo por aluno, a tendência é que os percentuais seguissem curva ascendente importante. Afinal, o piso foi criado para elevar o vencimento básico do magistério, objetivo a ser alcançado com uma atualização que tomaria por base a receita do Fundeb (crescente) e o número de matrículas (no ensino fundamental com ritmo menor de crescimento, e até de decréscimo ao longo dos anos, como indicam os dados). Com um aumento da receita superior ao incremento do número de matrículas, é se se esperar que os percentuais de atualização alcancem patamares significativos com o passar dos anos.
Conhecido esse cenário desde o princípio, era tarefa da União desenhar os mecanismos alocativos adequados para evitar insuficiências. Já os demais entes deveriam associar o piso a outro princípio do ensino disposto no artigo 206 da Constituição (e tratado no PNE), o plano de carreira. Como o crescimento do piso era previsível, essencial que modificassem suas leis, para eliminar vantagens remuneratórias que levem a distorções e ao crescimento desmedido da folha, sem controle do gestor (na União, tal reforma ocorreu no já distante ano de 1997), buscando definir uma carreira que garanta justa remuneração e, ao mesmo tempo, não comprometa o equilíbrio fiscal.
No que se refere ao acoplamento sempre problemático entre os objetivos de política fiscal e os direitos prestacionais, por certo a Lei de Responsabilidade Fiscal é um marco na gestão brasileira e não deve ser minorada. Entretanto, como recentemente decidiu o Tribunal de Contas de Santa Catarina, a aplicação do piso é obrigatória, “cabendo aos gestores, no caso de eventual extrapolação dos limites de despesas com pessoal decorrente da concessão do índice de atualização, tomarem as providências necessárias nos prazos previstos na Lei Complementar n. 101/2000 (LRF) para o retorno do percentual ao limite legal estabelecido (…)” [6].
Finalmente, quanto à interpretação das regras do piso, especialmente sobre a existência de norma vigente para a sua atualização, não é exagero afirmar que a dúvida interpretativa é novo capítulo do processo de resistência ao piso. Há reclamos sobre o critério de atualização, acusado de impor carga excessiva a estados e municípios em dificuldades financeiras, e essa crítica traduz-se em disputa jurídica. No entanto, a interpretação isolada de um dispositivo não oferta uma solução compreensiva e ajustada ao artigo 206 da Constituição e ao desenho da política educacional.
O critério de atualização do piso do magistério encontra-se no artigo 5°, parágrafo único, da Lei 11.738/08. O dispositivo preceitua que: “A atualização de que trata o caput deste artigo será calculada utilizando-se o mesmo percentual de crescimento do valor anual mínimo por aluno referente aos anos iniciais do ensino fundamental urbano, definido nacionalmente, nos termos da Lei no 11.494, de 20 de junho de 2007”. Essa Lei, que anteriormente disciplinava o Fundeb, foi revogada pela Lei n° 14.113/2020, a qual passou a regulamentar o Fundo de acordo com as novas disposições da Emenda Constitucional n° 108/2020. Como o artigo 5°, parágrafo único, da Lei n° 11.738/08, faz menção a critério fixado na Lei revogada, adveio a tese da inexistência atual de parâmetro de atualização, posição já albergada em algumas decisões judiciais de tutela provisória.
Essa linha interpretativa ignora a permanência do critério de atualização na nova Lei do Fundeb. O valor anual mínimo por aluno da Lei n° 11.738/08 equivale ao valor anual por aluno (Vaaf) estabelecido no artigo 6°, Lei n° 14.113/2020. O fato de a Lei n° 11.494/07 ter sido revogada não significou a revogação do critério. O rótulo mudou. A essência permanece.
Adotar uma interpretação simplista, apegada unicamente à revogação da Lei n° 11.494/2007, desconsidera a obviedade de que o critério de atualização continua em vigor, em legislação subsequente, e, pior, leva a conclusão que deixa no vazio um dos pilares do ensino (o piso do magistério), até então devidamente atualizado por critério reconhecido pelo STF. Interpreta a norma de modo a minorar a efetividade da Constituição, o que jamais é aceitável.
A subsistência do critério de atualização foi assentada pelo Tribunal de Contas de Santa Catarina, que concluiu enfaticamente:
“Dessa maneira, o critério de atualização não foi revogado, posto que continua na ordem jurídica, critério esse dotado de considerável densidade, não tendo a lei feito mera remissão genérica, como se fosse uma espécie de norma em branco. O mecanismo de atualização continua regulamentado na ordem jurídica, agora por outra norma legal, a saber, a Lei n° 14.113/20, sob a denominação de valor anual mínimo por aluno (Vaafmin). Em conclusão, não há que se falar em revogação do parâmetro de atualização, cujo conceito e metodologia de cálculo estão plenamente em vigor. Eventual argumento no sentido de que a revogação da Lei n° 11.494/07 retirou o fundamento de validade do critério de atualização não subsistiria ao melhor entendimento do Direito” [7].
Em conclusão, o critério de atualização do piso permanece em vigor e a publicidade do valor anual por portaria do MEC não afronta a lei. São justificáveis e salutares as discussões sobre a adequação do parâmetro atual à realidade dos entes, notadamente diante da complexidade do ajuste federativo. Entretanto, é sintomático que se discuta um teto para a remuneração das funções públicas e, ao mesmo tempo, se lute por um piso digno para o magistério. A despeito das divergências, é necessário reconhecer o compromisso constitucional com a qualidade da educação pública e com a valorização do magistério.
[1] https://g1.globo.com/educacao/noticia/2023/01/19/piso-salarial-dos-professores-entenda-como-funciona-e-se-estados-e-municipios-sao-obrigados-a-seguir-reajuste.ghtml
[2] De acordo com o art. 5°, parágrafo único, da Lei 11.738/2008, a atualização do piso deve seguir o mesmo percentual de crescimento desse valor
[3] Prova disso é a recente aprovação da Emenda Constitucional n° 128/2022, que proíbe ao legislador a transferência de encargo financeiro de serviço público aos estados, Distrito Federal ou municípios, sem a garantia de fonte de custeio, certamente motivada pela insatisfação causada pelo surgimento de obrigações em leis federais, não executadas pela União.
[4] STF. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.167. Rel. min. Joaquim Barbosa. J. em 27/4/2011. Publ. em 24.8.2011.
[5] STF. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.848. Rel. min. Luiz Roberto Barroso. J. em 1/3/2021. Publ. em 5/5/2021.
[6] TCE-SC. Processo @CON 22/00205311. Consulta. Rel. conselheiro Wilson Rogério Wan Dall. Decisão 118/2023. Sessão de 1/2/2023. Disponível em: Estado e municípios devem aplicar piso nacional dos professores e manter limites da Lei de Responsabilidade Fiscal | Tribunal de Contas SC (tcesc.tc.br). Entendimento semelhante foi esposado pelo TCM-GO, TCE-RN, TCE-PR e na Orientação Recomendatória 01/2022, do Comitê Técnico de Educação do Instituto Rui Barbosa, entidade de apoio ao desenvolvimento dos Tribunais de Contas. Inconteste que, atualizado o valor do piso, devem os gestores adotar as providências para torná-lo realidade em suas esferas, além das medidas porventura necessárias para adequar o ente aos limites da Lei de Responsabilidade Fiscal.
[7] TCE-SC. Processo n° @CON 20/00124288. Consulta. Rel. conselheiro Substituto Gerson dos Santos Sicca. Decisão n° 756/2022. Sessão de 27/6/2022.
Autores: Conselheiros Fabrício Motta (TCM-GO) e Gerson Sicca (TCE-SC).