Regulação das mídias sociais, desinformação e democracia

Edilberto Pontes

Um dos debates mais acirrados e necessários da contemporaneidade é o da regulação das mídias sociais. Verdade, mentira, pós-verdade, fatos e versões inquietam a humanidade há muito tempo e foram objeto de especial preocupação durante o século 20, marcado por ditaduras, guerras e ideologias em disputa. No regime nazista, a mentira era instrumentalizada por meio da propaganda de massa para consolidar um inimigo externo — os judeus, os comunistas, os “traidores da pátria” — e mobilizar a população para o fanatismo e a obediência cega.

A repetição da falsidade visava não apenas a convencer, mas tornar a mentira emocionalmente incontestável. Já no regime stalinista, a manipulação da verdade assumiu outra forma: a falsificação sistemática da história e a eliminação de opositores não apenas fisicamente, mas também dos registros oficiais. Stálin reescrevia a narrativa nacional constantemente, apagando figuras políticas, modificando eventos e ajustando os fatos conforme os interesses do partido, criando uma realidade mutável onde a verdade oficial mudava ao sabor do poder. Se o nazismo utilizava a mentira para justificar a destruição do outro, o stalinismo a utilizava para consolidar o controle absoluto sobre seu próprio povo.

A esse respeito, Hannah Arendt, em seu ensaio Verdade e Política, reflete sobre como o poder, quando se desvincula da realidade factual, pode transformar a mentira em um mecanismo de dominação. Para Arendt, a manipulação sistemática da verdade não é apenas um instrumento de governo, mas uma forma de remodelação da própria realidade social. No totalitarismo, a mentira não opera como um simples engano ou propaganda passageira, mas como uma nova estrutura de pensamento imposta pela força.

A verdade objetiva se torna irrelevante diante da repetição incessante de falsidades, e o que se impõe é uma “verdade oficial”, maleável conforme as necessidades do poder. Essa observação é crucial para compreendermos o fenômeno contemporâneo da desinformação: quando a mentira é institucionalizada, os cidadãos não apenas deixam de acreditar nos fatos, mas perdem a capacidade de diferenciar verdade e falsidade, o que compromete a própria possibilidade do debate democrático.

Manipulação do discurso
Além de Arendt, refletiram sobre essa questão diversos pensadores, discuto a seguir três em particular que oferecem contribuições fundamentais para compreendermos a dinâmica e possíveis formas de enfrentamento: Chaïm Perelman, Theodor Adorno e George Orwell. Suas reflexões nos auxiliam a interpretar os mecanismos da persuasão, da cultura de massas e da manipulação do discurso, oferecendo pistas para a construção de respostas no presente.

A teoria da argumentação de Chaïm Perelman, desenvolvida com Lucie Olbrechts-Tyteca, representa um marco na compreensão da persuasão sem reduzi-la à lógica formal ou à retórica vazia. Em Tratado da Argumentação: A Nova Retórica, Perelman rejeita a ideia de que a racionalidade se limita ao raciocínio dedutivo, destacando a importância da argumentação na construção do discurso jurídico, político e moral. Ele propõe uma abordagem baseada no convencimento, onde a adesão do auditório depende de uma articulação estratégica de valores e princípios compartilhados.

Essa preocupação com o discurso e sua capacidade de moldar percepções ressoa com outra linha de pensamento desenvolvida ao longo do século 20, especialmente nas críticas de Theodor Adorno à cultura de massas e à propaganda. Para Adorno, a indústria cultural, ao transformar a comunicação em um produto mercantilizado, impõe padrões de pensamento homogêneos e reduz a capacidade crítica do público. Sua visão dialoga diretamente com os alertas de George Orwell sobre os efeitos da propaganda estatal em regimes totalitários, em que a manipulação da linguagem se torna um instrumento de dominação. Em 1984, Orwell descreve o uso da novilíngua e da duplipensação como mecanismos de controle social, que não apenas distorcem a verdade, mas criam uma nova realidade discursiva na qual a própria ideia de verdade se dissolve.

Fake news e desinformação
Com a ascensão das fake news nas redes sociais, a questão da desinformação assume um novo contorno. No passado, a propaganda era um fenômeno predominantemente vertical, imposto por Estados ou grandes conglomerados midiáticos. No ambiente digital, a desinformação é descentralizada, multiplicando-se em redes difusas onde algoritmos privilegiam conteúdos de alto engajamento, independentemente de sua veracidade. As fake news não são um fenômeno essencialmente novo, mas sim uma evolução da manipulação discursiva impulsionada por novas tecnologias.

A teoria perelmaniana nos ajuda a entender por que a desinformação é tão eficaz. Como ele aponta, a persuasão não se dá apenas por provas lógicas, mas pela capacidade de um argumento se conectar aos valores do auditório. As fake news exploram essa dinâmica ao mobilizar crenças pré-existentes, apelos emocionais e tribalismo político. Diferente da argumentação racional, que busca construir consensos razoáveis, a desinformação subverte os próprios critérios de validação, tornando a falsidade indistinguível da verdade.

Adorno, por sua vez, alerta para um aspecto cultural essencial: a maneira como a repetição e a padronização reduzem a capacidade crítica dos indivíduos. Na era digital, isso se intensifica com bolhas informacionais e mecanismos de reforço cognitivo que tornam os usuários cada vez mais imersos em narrativas fechadas. Se a indústria cultural, segundo Adorno, alienava os indivíduos ao transformá-los em consumidores passivos de produtos culturais previsíveis, as redes sociais potencializam esse fenômeno ao criar experiências personalizadas de desinformação, adaptadas aos preconceitos e expectativas de cada usuário.

Isso nos leva a uma questão fundamental: como regular esse novo espaço discursivo sem comprometer a liberdade de expressão? No caso da mídia tradicional, mecanismos regulatórios sempre impuseram limites à propaganda enganosa e à responsabilidade editorial. No ambiente digital, contudo, a lógica é diferente. As plataformas operam como intermediárias neutras, permitindo a disseminação de conteúdos sem assumir responsabilidade sobre sua veracidade.

Regulação das mídias sociais
O desafio da regulação das redes sociais não pode ser resolvido simplesmente replicando as normas aplicadas à mídia tradicional. Como Adorno já apontava, a comunicação de massa tem o potencial de se tornar uma ferramenta de dominação cultural, moldando subjetividades. No ambiente digital, esse efeito é amplificado por algoritmos opacos que determinam quais informações circulam e quais são suprimidas.

Diante desse cenário, algumas propostas regulatórias incluem:

1) Transparência algorítmica: exigir que as plataformas revelem os critérios de priorização e ranqueamento de conteúdo.

2) Responsabilidade das plataformas: atribuir às empresas alguma forma de obrigação na moderação e no combate à desinformação.

3) Apoio à verificação de fatos: fomentar instituições independentes de checagem, garantindo acesso a informações públicas e promovendo a educação midiática.

4) Regulação diferenciada para redes sociais: reconhecendo que elas não são simplesmente veículos de comunicação, mas espaços interativos que exigem novos marcos normativos.

Perelman nos ensina que a argumentação pública precisa de critérios de validade para preservar o debate racional. Adorno nos alerta para os riscos da manipulação cultural que reduz a autonomia do pensamento. O desafio contemporâneo está em evitar que a fragmentação total da verdade torne impossível qualquer forma de consenso racional.

Se Orwell nos advertiu sobre os perigos de um Estado que impõe a verdade, a era digital nos coloca diante de um dilema oposto: como garantir que a verdade sobreviva em meio ao caos informacional? Essa talvez seja a questão central da democracia no século 21.

Edilberto Pontes é presidente do Instituto Rui Barbosa (IRB) e conselheiro do TCE-CE

Artigo originalmente publicado no portal CONJUR em 21.02.2025