O ALCANCE DAS COMPETÊNCIAS CONSTITUCIONAIS DOS TRIBUNAIS DE CONTAS PARA FORTALECIMENTO DA DEMOCRACIA E DA GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS*
* Conselheiro Ronaldo Chadid do TCE/MS
Desde o surgimento dos Estados modernos ocidentais o modelo adotado foi o constitucionalista, como garantidor da própria governabilidade e autonomia entre os Poderes. Além da estruturação interna do Estado e das regras gerais de seu funcionamento, o Constituinte de 1988 optou por reconhecer diversos direitos e atribuir deveres e competências a fim de garanti-los.
A teoria geral dos direitos da personalidade e da essencialidade dos direitos fundamentais consagrou a dignidade da pessoa humana na redação do inciso III do art. 1º da CF/88, dando maior coesão aos direitos e garantias fundamentais.
Além dessa importante conquista da sociedade brasileira, a Constituição Federal não hesitou em afirmar a obrigatoriedade da aplicação imediata dos direitos fundamentais, conforme determinação do §1º do art. 5º da Constituição Federal não restando dúvidas que a Administração Pública precisa cumprir o mandamus e realizar plenamente a dignidade da pessoa humana.
A forma de dar substância e realização aos direitos fundamentais passa pela análise das necessidades sociais que impedem que tais direitos sejam efetivos e possam ser usufruídos pela população. Por meio de diagnósticos precisos é possível tratar das problemáticas que envolvem a gestão pública e a insatisfação da sociedade com a elevação dessas temáticas em Políticas Públicas.
Diversas áreas da vida social, como saúde e educação, devem ser tratadas por Políticas de Estado (e não de Governo), uma vez que fazem parte de serviços vitais da sociedade brasileira, e que exigem soluções contínuas, não instantâneas. Elas evoluem em conformidade com a modernização e a visão de futuro e precisam estar consubstanciadas em Políticas Públicas sólidas e de longo prazo.
Ainda que idealizadas como Políticas de Estado, no Brasil é perceptível que as Políticas Públicas não conseguem cumprir com sua função social plenamente, em grande parte pela falta de gestão administrativa que não alcança o tratamento adequado aos recursos disponíveis.
Por outro lado, o próprio Estado instituiu mecanismos para auxilia-lo nessa tarefa por meio dos Órgãos de Controle, previstos nas Constituições Federais desde 1891, sendo o principal deles, os Tribunais de Contas, responsáveis pelo chamado “controle técnico” dentro do controle externo, que devem preconizar a defesa do patrimônio público, dos valores sociais e dos direitos fundamentais, por meio de mecanismos de combate ao desperdício e à corrupção, de incremento da transparência na gestão, e que detectam e impõem a correção dos rumos de implementação/consolidação/manutenção de Políticas Públicas que possam concretizar benefícios satisfatórios (e não somente mínimos) à sociedade.
A Constituição Federal de 1988 fortaleceu as competências dos Tribunais de Contas, atribuindo-lhes a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas; impondo expressamente o dever de prestação de contas ao controle externo, por um rol extenso e abrangente de responsáveis, ampliando o seu poder de fiscalização.
Todos os dispositivos constitucionais que tratam das competências do Tribunal de Contas da União foram reproduzidos por simetria nas Constituições Estaduais aplicando-se aos Tribunais de Contas Estaduais; e nas Leis Orgânicas dos municípios que possuem Tribunais de Contas do Município ou dos Municípios.
Na Constituição Federal de 1988 encontra-se no núcleo dos aspectos passíveis de fiscalização, a fixação do elemento “economicidade”, que expandiu a atuação dos Tribunais de Contas. Nas Constituições anteriores, a adequação dos fatos à norma limitava-se ao aspecto de legalidade, restringindo-se aos aspectos formais dos atos administrativos. E com a Emenda Constitucional n. 19, de 04 de junho de 1988, onde fora acrescido ao art. 37, caput, o princípio da “eficiência”, consolidou-se uma legitimidade à fiscalização verticalizada do controle externo e que se estende até mesmo à verificação da própria gestão administrativa.
Nos países mais desenvolvidos, a noção de cidadania e moral são avançadas, os índices de corrupção são baixíssimos, a gestão administrativa governamental é de excelente qualidade, o dinheiro público é bem empregado, e as Políticas Públicas funcionam por meio da própria eficiência do serviço público disponibilizado. Ainda assim, existem Órgãos de Controle bastante austeros, justamente para que esses altíssimos índices de eficiência sejam mantidos ou melhorados. Isto porque, é o controle e a vigilância que fornecem o instrumental necessário para detectar falhas (intencionais ou não) e corrigir as irregularidades.
No Brasil o caminho não seria diferente. Aliás, muito mais que nos países desenvolvidos, os Órgãos de Controle são estritamente essenciais à manutenção da própria ordem social.
Nesse ponto é que entendemos ser primordial para o Brasil, o reconhecimento da existência de uma função social dos Tribunais de Contas. A partir da percepção e da consolidação desse conceito, é possível o aprimoramento da própria Instituição Tribunal de Contas, à medida em que, a partir de então, passa ele a se assenhorar de suas competências para o cumprimento de sua missão maior: ajudar a melhorar a qualidade da gestão da Administração Pública e principalmente, tornar eficiente as Políticas Públicas para o atendimento pleno às necessidades da população brasileira.
Nunca na história republicana a função social dos Tribunais de Contas esteve tão evidente e fortalecida, o que se deve pelo expansionismo de suas competências constitucionais replicadas em todas as Constituições Estaduais e em algumas Leis Orgânicas Municipais.
A concretização da sua função social somente se dará com o cumprimento de suas competências, e exigindo dos responsáveis a aplicação de todos os princípios inerentes à Administração Pública, constitucionais ou infraconstitucionais, tácitos ou expressos.
Os aspectos meramente legais e formais, embora importantes, já não mais configuram a essência do existir dos Tribunais de Contas, cabendo a estes transformar a previsão constitucional do princípio da eficiência aplicável à Administração Pública em concretização em prol da sociedade e dos direitos fundamentais.
O paradigma da eficiência transforma a função social dos Tribunais de Contas, de uma categoria teórica a outra, de função pragmática e concreta.
O aprimoramento e o assenhoramento de suas competências não significa dizer que os Tribunais de Contas são a própria função social, uma vez que a Instituição não é um fim em si mesma. É por meio da eficiência da fiscalização para que o dinheiro público seja corretamente aplicado e que as políticas públicas sejam meios reais de concreção de direitos fundamentais, que as Cortes de Contas vão expressar a sua função social.
Dentre as diversas formas de exercício de suas competências, os Tribunais de Contas têm à disposição um grande número de instrumentos, como as medidas cautelares, a atuação concomitante, o monitoramento, as novas tecnologias da informação, as ferramentas de gestão de riscos, e os termos de ajustamento de gestão.
Ao contrário do Poder Judiciário que age apenas mediante provocação, os Tribunais de Contas possuem competência para atuação ex officio, o que possibilita a utilização desses instrumentos de maneira vanguardista, na medida em que o desperdício de recursos e o mau planejamento de Políticas Públicas podem ser detectados previamente e corrigidos.
A presença dos Tribunais de Contas de maneira antecipada possibilita o acompanhamento de todas as fases do ciclo das Políticas Públicas. Desde a sua idealização, contribuindo com a discussão de sua construção com suas informações técnicas, passando pela própria execução dessas Políticas junto à população, e até mesmo na análise dos resultados obtidos, atuando pró-ativamente, na busca pela concretização de sua função social.
A adoção de medidas cautelares de natureza mandamental que proporcionam a correção imediata de irregularidades e ilegalidades, e a fiscalização concomitante são os instrumentos em que os Tribunais de Contas conseguem um maior alcance na Administração Pública por atingirem o centro da gestão administrativa e, principalmente, no transcurso da execução de suas atividades. Portanto, devem ser esses instrumentos cada vez mais difundidos e largamente utilizados.
E para maximização do aproveitamento desses instrumentos, devem os Tribunais de Contas servirem-se das modernas tecnologias e que contribuem para que a sua presença seja real e concomitante junto aos entes e órgãos fiscalizados.
Aliado a isto, o setor privado muito tem contribuído para o avanço da administração empresarial e da gestão de pessoas, de modo que, tais ferramentas precisam ser absorvidas pelo Controle Externo para o aumento da eficiência de sua atividade. Em especial, as ferramentas de gestão de riscos, que possuem similitude com o desempenho da atividade de detecção de falhas e irregularidades, constituem a melhor das experiências e as mais rápidas para adaptação e aplicação pelos Tribunais de Contas.
É dessa maneira que o Controle Externo atingirá definitivamente a eficiência pedagógica junto à Administração Pública diminuindo sua carga de atuação no cumprimento da função punitiva (e que evidencia um excesso de fiscalização a posteriori), passando a atuar de maneira preventiva e concomitante, orientando e corrigindo os percalços que impedem o desenvolvimento das Políticas Públicas.
Se antes da Constituição Federal de 1988, a Instituição Tribunal de Contas cumpria uma função fiscalizatória burocrática; nessa nova era democrática surgida ao final do século XX, passa a desempenhar uma função fiscalizatória administrativa e social, que tende a ser mais preventiva que repressiva, mais concomitante que a posteriori, mais pedagógica que punitiva, mais presente, mais atuante e mais moderna.
Os Tribunais de Contas, sendo capazes de detectar com agilidade as irregularidades na aplicação do dinheiro público, também com rapidez e preventivamente, exigindo a reparação de qualquer desvio que comprometa a boa gestão pública ou que coloque em risco a população nas diversas áreas da atuação governamental estará cumprindo sua função social que, segundo a Constituição Federal, constitui-se de uma reserva de lei reforçada, pois lhe permite exercer o controle técnico (e não político) das ações da Administração Pública e julgando o exercício dos atos praticados que envolvam aplicação do dinheiro, bens e valores públicos, principalmente sob o prisma da economicidade e eficiência.
A interpretação dos arts. 70 e 71 da Constituição Federal de 1998 e das Constituições Estaduais e Leis Orgânicas Municipais reclamam dos Tribunais de Contas o desenvolvimento de uma atividade que assegure o cumprimento de sua função social, superando o controle meramente formal e documental, e passando a se ocupar da gestão administrativa, pois somente essa abrangência é capaz de se fazer compreender e controlar a eficiência dos atos de Administração Pública e, por consequência direta, da eficiência na implantação, manutenção e desenvolvimento das Políticas Públicas que devem levar à paz social e à satisfação das necessidades da população, não apenas de maneira mínima, mas satisfatória para se fazer cumprir o fundamento da dignidade da pessoa humana.
Ronaldo Chadid – Conselheiro do TCE-MS