Cognatos são palavras que compartilham origem etimológica. Geralmente, remetem a significados similares. Não raro, entretanto, o tempo e a erosão do uso faz com que palavras de grafias próximas acabem por ter significados distantes, antônimos.
Sacando a analogia da linguística, o Tribunal de Contas é uma riqueza de cognatos. É um Tribunal, mas não integra o Judiciário. Tem processos, mas não há autor ou réu. Dispõe de um Ministério Público, que não é titular da ação penal. Auxilia o Legislativo, mas não é “serviço auxiliar” do Legislativo. Suas “contas” pouco frequentemente contêm cálculos e mesmo quando há, raramente o objetivo é liquidar a precisão com que foram feitos.
Há dois que tem se mostrado especialmente ruins.
Um primeiro é “auditor”. Nas empresas, auditor é aquele profissional de ciências contábeis que apura se a escrituração e os demonstrativos foram elaborados de acordo com as normas. No Tribunal de Contas, auditor é julgador, membro necessário do Plenário, a teor da Resolução 3/2014 da Atricon.
Há quem, desconhecendo o Tribunal de Contas, alegue que os auditores devem se limitar a realizar as auditorias e, se realizam tarefas de judicatura, o fazem clandestinamente, buscando ascenção. Aí cabe uma leitura do §4º do art. 73 da Constituição: os auditores exercem atribuições de judicatura e gozam das proteções de juiz de Tribunal.
A confusão, a bem da verdade, não é nova. Dos registros do STF obtemos a seguinte advertência do então Ministro Octavio Gallotti: “O status dos auditores dos Tribunais de Contas tem dado margem a muitas perplexidades, que começam com a impropriedade da denominação do cargo, ligada a uma tradição respeitável, mas totalmente divorciada do atual conceito de atividades de auditoria. Imprópria, por isso mesmo, para designar o servidor que tem normalmente assento no Plenário do Tribunal de Contas”.
A tradição a que o Ministro se refere e que aquele que julga de auditor, embora antiquada, é ampla. O Código Brasileiro de Justiça Desportiva, por exemplo, dispõe que o Superior Tribunal de Justiça Desportiva é composto por nove membros denominados “auditores”. Os membros dos Tribunais Eclesiásticos eram conhecidos como “auditores”, figuram, atualmente, como “juízes auditores”. Também são “juízes auditores” os julgadores dos Tribunais Militares. Eis a cepa que produziu a denominação “auditor do Tribunal de Contas”.
Talvez uma pergunta simples levante mal entendidos: quantos auditores há no Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina? A resposta correta é três. A Lei Complementar 666/2015 do Estado de Santa Catarina, de 18 de dezembro de 2015, em grande parte regula as atividades profissionais de três servidores, tão somente.
O projeto que deu origem à norma havia sido proposto pelo TCE-SC com a denominação alternativa “conselheiro-substituto” à denominação constitucional “auditor”, expediente já levado a efeito no TCU com a Lei 12.811/13 e outras unidades da federação, tal como o Pará, com a Emenda Constitucional 64/2015. A disposição, no entanto, foi removida do projeto para, em seu lugar, serem adicionados mecanismos que impedem a substituição de conselheiro por auditor e que reduzem as atribuições dos auditores quando não substituindo ao arquivamento de contas das quais não constem apontamentos (arts. 7º, 8º e 11). Em suma, a Lei indefere o art. 71, §4º da CF/88.
Ao reformar completamente as disposições do projeto, e passando a tratar inclusive da organização e funcionalismo do TCE-SC, o Legislativo catarinense escorregou no segundo cognato ruim: o Tribunal de Contas como auxiliar do Poder Legislativo.
A Constituição faz uso da expressão “auxílio” para significar subordinação administrativa, o que ocorre quando diz que o Presidente será auxiliado pelos Ministros de Estado (art. 76 Constituição Federal) ou quando diz que cabe aos Tribunais organizar os seus serviços auxiliares (art. 96, I, “b” Constituição Federal).
Ao utilizar a mesma expressão, no entanto, o art. 69 da Constituição do Estado de Santa Catarina e o art. 71 da Constituição Federal não desejam estabelecer esse tipo de relação. O Tribunal de Contas não é departamento da Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina. Não pode o Legislativo extinguir o Tribunal de Contas, como faria a um serviço auxiliar, nem prover cargos, nem mesmo estabelecer atribuições, uma vez que a Constituição já se incumbiu disso.
Enfim, os Tribunais de Contas são dotados de autonomia e inexiste qualquer vínculo de subordinação institucional ao Poder Legislativo, pois suas atribuições emanam da própria Constituição. Nem mesmo podem os Legislativos Estaduais emendar aos projetos iniciados pelo Tribunal de Contas com assuntos impertinentes. Se restou a impressão de que essas últimas duas conclusões são pretenciosas, confira que o próprio Supremo Tribunal Federal as emitiu recentemente (ADI 4190/RJ e ADI 3223/SC).
Falando do que o Tribunal de Contas aparenta ser, o Legislativo catarinense produziu uma Lei que, como filme de bangue-bangue mal traduzido, não deixa saber quem é o bom, o mau e o feio. Paciência. É exclusividade do Judiciário esclarecer o que está escrito na Constituição e não é exclusividade do Legislativo errar ao interpretar pessoas e ações.
Todos nós, humanos, ao interpretar, por vezes, erramos. O advogado Heleno Cláudio Fragoso dizia que tiranos não mudam as leis, mudam os juízes. Tenho certeza de que essa não foi a intenção sorrateira da LC 666/15.
Alexandre Manir Figueiredo Sarquis é Conselheiro-substituto do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP)