Desafios e esperanças*
Na cena gravada a partir do lado externo, o espectador enxerga apenas os rostos de algumas crianças, enquadrados pelos marcos da janela e pelas aberturas nos vidros. Os pequenos olham para fora, com ar de curiosos, e respondem a questionamentos da professora a respeito de árvores e borboletas. A gritaria alegre toma conta do local quando ela pergunta quem deseja sair para “descer o morro escorregando”.
Esse momento foi registrado a 40 quilômetros de onde escrevo agora, na escola municipal de educação infantil Ernest Sarlet, de Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, e faz parte do documentário “O Começo da Vida 2: Lá fora”. Além da distância física de Porto Alegre, há um intervalo de tempo nessa equação. A cena foi gravada em julho de 2018, muito antes de sermos surpreendidos pela pandemia que há um ano nos assusta e aprisiona.
No documentário, uma representante da rede local de ensino afirma que “as paredes sufocam uma criança” e que é preciso captar a necessidade delas de sair ao ar livre. A ideia que embala a obra é mostrar a importância da conexão com a natureza para o desenvolvimento integral na infância. A vida do lado de fora, em meio ao verde, favorece a imaginação, proporciona descobertas e aprendizados e contribui, como um respiro, para as lições que exigem concentração e estar do lado de dentro. Esse argumento é sustentado ao longo do documentário com cenas de crianças gravadas em várias cidades do mundo, Cidade do México, São Paulo, Santiago e Lima.
Grandes centros urbanos já eram desafiadores para a formação das crianças antes da pandemia. O coronavírus jogou o problema de forma mais explícita na nossa face e trouxe à tona mais uma vez os obstáculos gerados pela desigualdade. Enquanto esses momentos de liberdade para aprender lá fora não chegam, é preciso pensar nessa política pública e planejar o futuro; cuidar do que já se revela urgente. Não restam dúvidas, é preciso priorizar a educação para romper o círculo da pobreza, principalmente por meio da promoção da equidade. Investir na aprendizagem nos primeiros anos de vida significa priorizar a formação de capital humano, um dos principais fatores de crescimento de uma nação.
Estudos demonstram que frequentar a escola na primeira infância traz benefícios múltiplos, como o desenvolvimento de competências afetivas, sociais e cognitivas ajudando na formação de bases estruturais para a aprendizagem. E, no futuro, esses aspectos impactarão positivamente na renda e na qualidade de vida. Além disso, mães e pais que trabalham ou que precisam se recolocar no mercado de trabalho têm, no colégio, um local seguro para os seus filhos.
Penso sobre isso ao lembrar que o Marco Legal da Primeira Infância (Lei 13.257/2016) está completando cinco anos neste dia 8 de março. Trata-se de um instrumento agora ainda mais necessário para balizar as políticas públicas destinadas ao desenvolvimento das crianças. Essa legislação recente, elogiada pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), coloca a primeira infância na agenda da gestão pública, da família e da sociedade brasileira. E representa um dos mais completos instrumentos para, em se cuidando da saúde e da educação da criança, colocar-se em prática a “absoluta prioridade’ de que trata a Constituição (art. 227). Compromisso, contudo, que tem muito a ser retirado do papel, pelo agir eficiente e efetivo dos agentes públicos, dos diferentes Poderes e órgãos, já que muitas entregas ainda precisam ser feitas. Mas há também avanços.
Um exemplo é a iniciativa desenvolvida há uma década pelo Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, que faz o acompanhamento da oferta de vagas em escolas públicas, capacita técnicos e gestores e cobra resultados, a partir das metas e estratégias do Plano Nacional de Educação (PNE). De 2010 a 2019, de acordo com a Radiografia da Educação Infantil, pesquisa que identifica anualmente as carências em cada um dos 497 municípios gaúchos, houve aumento de 88% nas vagas em creches e de 49% na pré-escola. As edições anuais desse estudo, acompanhadas de auditorias do TCE, indicam que o acompanhamento concomitante do órgão de controle tem levado ao aumento dos investimentos, com a ampliação do número de crianças atendidas e a melhoria da qualidade do atendimento.
O mesmo caminho tem sido percorrido pelos Tribunais de Contas brasileiros em relação a políticas públicas voltadas à criança, na linha do que estabelecem o Marco Legal e o PNE. Mas esse deve ser um esforço coletivo, do ambiente público e da sociedade, o que significa ação articulada, coordenada e efetiva. Vale dizer: traduzir a prioridade, não raro apenas retórica, no orçamento público e na sua correta execução, com monitoramento, avaliação e, se necessário, sanção a quem se omite ou negligencia. O pacto civilizatório, o conhecimento, a experiência, a sensibilidade, a dignidade nos indicam: “Há que se cuidar do broto, pra que a vida nos dê flor e fruto”. Desafios e esperanças a nos unirem.
*Cezar Miola, presidente do Comitê Técnico da Educação e conselheiro do Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul.