O Tribunal de Contas, como “órgão constitucional de soberania”, na dicção de Joaquim Gomes Canotilho, tem posição proeminente dentre aqueles que desempenham as principais funções do Estado.
A função que lhe guarda, em auxílio ao Poder Legislativo, é a de controle externo da execução orçamentária e financeira de todos os Poderes e órgãos da administração direta e indireta e o julgamento dos responsáveis por bens e valores públicos.
Devido à especialidade desta tarefa que lhe fora constitucionalmente designada, se deve reconhecer a sua não vinculação estrutural ou funcional a nenhum dos Poderes constituídos. Sem ser um deles, está entre eles. É dizer, o Tribunal de Contas destaca-se pela independência, tanto em relação ao Legislativo, como ao Judiciário e ao Executivo. Destoa, portanto, das rígidas linhas da clássica tripartição de Poderes, pois trata-se de criação posterior a esta teoria e é fruto da prática democrática.
Além disso, não mais se enxerga a separação de Poderes como dogma absoluto e abre-se espaço à existência de outras funções constitucionais, exercidas por órgãos igualmente soberanos, independentes e especializados.
Conforme Otto Bachof, não existe nenhum esquema de divisão de Poderes que possa funcionar em todas as épocas e sob os mais diversos fatos sociais.
O caput do artigo 44 da Constituição revela com clareza a desvinculação estrutural das Cortes de Contas do Poder Legislativo, ao prescrever que este compõe-se da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. É imperioso lembrar que as próprias unidades de administração do Parlamento são controladas pela Corte de Contas, não sendo a recíproca verdadeira.
Da mesma forma, conquanto na Constituição Federal haja referência dos Tribunais de Contas ao Poder Judiciário, notadamente no que diz respeito a sua organização e ao tratamento dispensado aos seus membros, não se pode dizer que estes Tribunais de controle de contas sejam parte integrante do Poder Judiciário, como acontece, por exemplo, em Portugal e Grécia. O próprio Conselho Nacional de Justiça (CNJ) já se pronunciou que não exerce sua competência sobre as Cortes de Contas.
Caracterizam-se, portanto, os Tribunais de Contas, como órgãos constitucionais plenamente autônomos, os quais não se subsomem a qualquer dos Poderes do Estado e nem são por eles controlados.
Calha, portanto, que a velha pergunta que percorre a história do pensamento político, desde Platão se dirigindo a Sócrates – “Quem custodia os custódios?” –, hoje pode ser repetida com esta fórmula: “Quem controla os controladores? ”
Os Tribunais de Contas constituem os únicos foros das funções desempenhadas pelo Estado, que não sofrem qualquer tipo de fiscalização externa. E é justamente por isso que, muitas vezes, se diz que eles são “autocontrolados”. Desta feita, a criação de um órgão com poderes de controle sobre as Cortes de Contas, em âmbito nacional, responderia a esta imperfeição contingente no cenário republicano de governo. Afinal, “regime republicano é regime de responsabilidade.”
Assim, a criação do Conselho Nacional dos Tribunais de Contas (CNTC), com vistas a modernizar as Cortes de Contas e atuar com força regulamentar e correicional sobre os seus membros, se mostra medida iminente. É o necessário “controle do controle”.
Já existem propostas, relativamente antigas, de criação desse conselho, consubstanciadas nas PEC’s 28/2007, do então parlamentar e atual Ministro do TCU Vital do Rêgo, 30/2007, do Senador Renato Casagrande e, mais recentemente, a PEC 06/2013, proposta por vários Senadores e relatada pelo Senador Ataídes Oliveira. Todas aspiram a inclusão de artigo à Constituição dispondo sobre o CNTC, sua composição e atribuições.
Este Conselho atuaria de maneira prospectiva, emanando provimentos, resoluções e atos de natureza infralegal para conferir eficiência aos Tribunais de Contas, estabelecendo ritos de apuração de possíveis ilícitos cometidos por seus membros.
Tal modelo de fiscalização conferiria maior legitimidade político-social à atividade dos magistrados de contas, evitando os efeitos deletérios da influência política.
Ademais, propugna-se por um Conselho plural e participativo, que não justifique uma alcunha de “faz de contas”, tendo em sua composição, além de membros do colegiado e representantes dos servidores, a própria sociedade civil. Cidadãos com capacidade de atuar, com independência e aptidão técnica, na construção de uma ponte entre o Tribunal e a sociedade, por um lado permitindo a oxigenação da burocracia e, por outro, respondendo às críticas da opinião pública.
Erradicar-se-ia, assim, o pior daquilo que ainda resta no seio das instituições, como um vírus debilitador de procedimentos investigativos: o corporativismo.
E, em sendo o controle um direito fundamental do cidadão, por que esta regra não se daria aos magistrados de contas, agentes públicos que são?
Aliás, por que os resultados positivos verificados com a criação e operacionalização do CNJ e CNMP não podem ser estendidos aos Tribunais de Contas?
Aos Ministros e Conselheiros cabe o mesmo raciocínio demonstrado pelo Ministro do STF Cezar Peluso, ao declarar a constitucionalidade da implantação do CNJ, no julgamento da ADI 3367/DF: “Se quisermos livrar os juízes dos lobbies e das pressões corporativas, é preciso coloca-los ombreados com a cidadania”.
Tem-se, portanto, que a criação do Conselho Nacional dos Tribunais de Contas merece ser reconhecida como um imperativo republicano.
A democracia reclama que todos os atos estatais tenham destinação pública, inclusive os de controle e, neste contexto, os membros das Cortes de Contas não podem pretender que a sua fisionomia institucional não possa ser redesenhada. Autonomia não se confunde com isolamento e o Tribunal de Contas deve superar, de vez, o mítico pejorativo, segundo palavras de Getúlio Vargas, de ser um “arquivo de amigos”.
Por Doris de Miranda Coutinho, Conselheira do Tribunal de Contas do Estado do Tocantins, membro honorário do Instituto dia Advogados Brasileiros, aluna do doutorado em Direito Constitucional da Universidad de Buenos Aires