Crise Fiscal brasileira: em busca de um diagnóstico correto (ou para evitar bodes expiatórios)
Edilberto Carlos Pontes Lima[1]
Como se sabe, o problema fiscal é uma das principais dificuldades brasileiras. Só em 2018, o déficit primário consolidado (União, Estados, Municípios e empresas estatais) alcançou R$ 108 bilhões, concentrado basicamente no governo federal, uma vez que o conjunto de Estados e Municípios foi levemente superavitário. O déficit nominal, que inclui os juros, aproximou-se de R$ 500 bilhões, sendo menos de 15% desse valor de responsabilidade de Estados e Municípios. Em consequência, a dívida pública bruta alcançou quase 80% do PIB no fim de 2018, crescendo 25 pontos percentuais em pouco mais de quatro anos.
Até 2013, havia superávits primários expressivos. O superávit primário consolidado alcançou 1,7% do PIB naquele ano, sendo 1,3% do governo central e 0,3% do PIB dos governos estaduais e municipais. O pagamento de juros também revela deterioração expressiva. Enquanto que se pagou 5% do PIB de juros em 2013, esse patamar atingiu 9% no fim de 2015, para depois recuar lentamente, mas ainda superior aos patamares do começo da década, fechando 2018 abaixo de 6% do PIB. Os jornais noticiam que muitos Estados e Municípios declaram situação de calamidade econômica no início de 2019, por não poderem honrar compromissos com servidores e fornecedores. Como se chegou a esse estado de coisas?
Preliminarmente, é fundamental ter um correto diagnóstico do problema. Os números permitem algumas conclusões: a primeira é que o principal problema fiscal do Brasil é na União, não nos Estados e Municípios; a segunda é que a situação dos Estados é muito heterogênea, uma vez que o conjunto não é deficitário; a terceira é que o principal responsável pelo crescimento vertiginoso da dívida pública foram os juros nominais, não as despesas primárias (pessoal, custeio etc). Outra conclusão relevante é que o principal problema nas despesas primárias é no INSS, cuja despesa saltou de menos de 1% do PIB em 2013, para 3% do PIB no fim de 2018.
Identificado o problema, é legítimo que se questione: como atuaram as instituições que, pelo menos em princípio, deveriam evitar que se chegasse a tal cenário? Uma vez que o principal fator para o crescimento da dívida pública foi o crescimento dos juros nominais na União, que papel desempenha o Tribunal de Contas da União nesse campo? Pode o TCU interferir na política de fixação das taxas de juros pelo Banco Central? A política monetária no Brasil está sujeita a muito poucos controles institucionais. A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) estabeleceu apenas regras para maior transparência ex post e dificultou o financiamento do Tesouro pelo Banco Central. Não muito mais que isso. Aliás, o exercício da competência do Senado de estabelecer os limites de endividamento dos entes federados deu-se apenas parcialmente, restringindo-se a Estados e Municípios: a União até hoje não tem limites. Se a promessa da Lei de Responsabilidade Fiscal era garantir equilíbrio intertemporal do orçamento, os principais itens de despesa – juros e despesas com inativos – são pouco controláveis pelos Tribunais de Contas, uma vez que obedecem a regras próprias de formação.
Não obstante tudo isso, houve avanços significativos, mas que se mostraram heterogêneos ao longo da federação. A evidência disso é que há Estados e Municípios com posição fiscal sólida e o conjunto dos Estados, repita-se, é superávitário. As principais instituições responsáveis por garantir seu cumprimento, segundo a LRF, são os Tribunais de Contas e o Ministério Público, titular da ação penal em caso de crimes fiscais e responsável por ações de improbidade administrativa. A experiência revelou, no entanto, um problema de economia política em algumas situações. É que, em alguns Estados, os limites de gastos de pessoal alcançaram inicialmente os órgãos de enforcement. Criou-se, em tais situações, um incentivo perverso que favoreceu interpretações que flexibilizaram a lei, em parte pelas dificuldades desses órgãos.
O caso do Ministério Público é emblemático: a LRF estabeleceu um gasto de pessoal de 2% da receita corrente líquida, enquanto que assegurou 6% para o Poder Judiciário. O drama é que o MP cresceu: onde há um juiz, há um promotor de justiça, onde há um desembargador, há um procurador de justiça. Mas o seu limite com despesas de pessoal é apenas um terço daquele do Poder Judiciário. Não é de estranhar que em muitos Estados, o MP foi dos primeiros a ver seus gastos próximos dos limites e, em consequência, a pressionar por interpretações mais frouxas que excluíssem itens de despesa (Imposto de Renda, inativos etc) do cálculo.
Muitos Tribunais de Contas também tiveram problemas nesse campo. Suas atribuições cresceram muito pós Constituição de 1988 e pós Lei de Responsabilidade Fiscal. Diferentemente do Poder Judiciário e do Ministério Público, que receberam um percentual fixo da receita corrente líquida, igual em todos os Estados, os TCEs receberam proporções distintas, havendo Estados em que o percentual reservado ao respectivo TCE é mais de duas vezes o que foi destinado pela LRF no Estado vizinho. Ou seja, os meios disponíveis para a mesma tarefa são muito diferentes. Isso porque a lei dividiu o percentual do Poder Legislativo entre as Assembleias e os Tribunais de Contas de acordo com uma média dos três anos anteriores à lei. Alguns TCEs já estavam em franco processo de modernização em 2000, outros iniciaram esse processo depois, tendo que realizar concurso público e renovar seus quadros funcionais. Um exemplo emblemático é a participação do Ministério Público junto aos TCEs e dos Auditores (Conselheiros Substitutos). Em 2000, essa despesa não existia em muitos tribunais de contas estaduais, mas estes foram obrigados pelo Supremo Tribunal Federal a criar as respectivas carreiras, prover estruturas de assessoramento, enfim gastos obrigatórios novos sem contrapartida em expansão dos limites. Este, aliás, foi um dos equívocos da LRF: estabelecer limites fixos perenes, sem previsão de revisão periódica de acordo com a dinâmica das instituições públicas.
Não se ignora que os Estados têm um problema fiscal estrutural grave, que decorre de uma receita disponível muito concentrada em poucos tributos e despesas públicas intensivas em mão-de-obra: segurança, educação, saúde. O ICMS, principal imposto dos Estados, é muito mais um excise tax (imposto específico), concentrado em algumas grandes bases, do que um IVA. O problema é que algumas dessas bases sofrem forte processo de erosão, o que pode vir a comprometer fortemente as finanças estaduais. Urge uma reforma tributária que contemple a diversificação e o alargamento dessas bases. Obviamente que há uma questão de federalismo fiscal e que não se trata de simples transferência de bases da União para Estados e Municípios, uma vez que, como vimos, é na União onde se concentra o maior problema fiscal do País. Parece, assim, inevitável o debate sobre a necessidade de um aumento da carga tributária brasileira, avaliando custos e benefícios dessa elevação.
Os críticos de regras fiscais, como o Professor Alberto Alesina, da Universidade de Harvard, por exemplo, já apontavam, nos anos 1990, que elas seriam inúteis ou supérfluas. Inúteis porque quando fossem necessárias, elas não poderiam ser utilizadas, porque as restrições políticas não permitiriam. Supérfluas porque se houvesse consenso político, a austeridade fiscal seria obtida independentemente de lei de responsabilidade fiscal.
A experiência brasileira mostra que o Professor Alesina estava apenas parcialmente correto. A Lei de Responsabilidade Fiscal não foi supérflua quando havia grande compromisso com o ajuste fiscal, como nos primeiros anos da década de 2000, porque ela contribuiu para dar foco às finanças públicas, provendo alguns meios (não todos) para um maior equilíbrio. Tampouco foi inútil, porque se a situação fiscal atualmente não é favorável, poderia ser muito pior. Há inúmeros casos de Tribunais de Contas estaduais que adotaram interpretações restritivas para os termos da lei, contendo pressões por expansões de gastos. Mesmo o TCU, que não conseguiu conter – e não dispunha de instrumentos para tanto – a deterioração fiscal da União dos últimos anos – alertou em diversas situações e chegou a emitir parecer desfavorável às contas da então Presidente da República.
Mas leis de responsabilidade fiscal não são panaceia. A experiência internacional evidencia esse fato. A Europa vive às voltas com o desrespeito aos limites de dívida e de déficit estabelecidos ainda no Tratado de Maastricht, em 1992, o que a obrigou a uma ampla reformulação há alguns anos, cujos resultados ainda não podem ser avaliados.
Por fim, a crise econômica explica boa parte da deterioração fiscal brasileira. Como se sabe, a maior parte das receitas públicas segue a evolução do PIB. As despesas, por sua vez, têm forte componente vegetativo e alguns itens, como a previdência, por exemplo, tiveram crescimento explosivo. Não por acaso, a reforma da previdência é pauta constante das discussões. Pouco os Tribunais de Contas – ou qualquer outra instituição de controle – poderiam fazer nesse caso. Mesmo aprovada a reforma da previdência os efeitos principais não serão imediatos.
Encontrar respostas fáceis para os problemas brasileiros é trivial, mas não contribui para se avançar nas soluções. As instituições podem e devem ser aperfeiçoadas. Os Tribunais de Contas talvez sejam as instituições que mais se modernizaram no Brasil nos últimos 10 anos. Ainda há muito o que caminhar, mas ignorar esse fato apontando bodes expiatórios é buscar aplausos fáceis e turvar o debate.
[1] Doutor em Economia. Autor de Curso de Finanças Públicas: Uma abordagem contemporânea e de Regras Fiscais: Teoria e Evidência. Conselheiro Presidente do TCE/CE.