O sintoma de uma sociedade doente: Quando tudo vira lei

“Enquanto continuarmos apostando nas leis como muletas para suprir nossa falência cultural e a ganância material de poucos, seguiremos alimentando um ciclo perverso: mais leis, mais repressão, menos liberdade — e, paradoxalmente, ainda menos ordem”.

João Antonio

Você já reparou que, no Brasil, toda crise, todo problema, toda polêmica — por menor que seja — rapidamente vira um projeto de lei? É quase uma mania nacional acreditar que, para cada desconforto social, moral ou cultural, a solução está em mais uma norma, mais uma regra, mais uma proibição.

Somos uma nação que coleciona leis. Leis que tentam, desesperadamente, resolver problemas que, na verdade, têm raízes muito mais profundas: a falta de educação, de cultura, de ética pública e de senso coletivo.

Aqui, as normas se tornaram uma espécie de “remédio” para todos os males. Qualquer ideia programática vira projeto de lei; qualquer clamor moral rapidamente se converte em normativa estatal. Investimos pouco em cultura e educação, e, diante das posturas inconsequentes de alguns, a resposta automática quase sempre é a mesma: criar uma nova lei.

Mas isso não resolve. Ao contrário, só mascara o problema.

Se é verdade que o Estado nasce das diferenças e que as leis existem para disciplinar a convivência coletiva, também é verdade que uma sociedade moralmente adoecida — marcada por profundas desigualdades sociais e por uma distribuição de renda estruturalmente injusta — tende a exigir do Estado não apenas um volume crescente de normas, mas também um aparato repressivo cada vez mais robusto, como se a ordem pudesse ser imposta exclusivamente pela força. O excesso de leis, portanto, não é expressão de civilização, mas sintoma de um povo culturalmente empobrecido, incapaz de internalizar os valores essenciais da convivência, do respeito mútuo, da contenção da ganância — do lucro a qualquer custo — e da responsabilidade coletiva que sustenta uma vida social verdadeiramente ética e equilibrada.

Viver em sociedade exige algo mais sofisticado do que obedecer normas: exige senso coletivo, exige respeito, exige responsabilidade. E, principalmente, exige a compreensão de que o dissenso não é um problema em si. Divergir, debater, discordar — tudo isso é parte da construção democrática. O problema surge quando o dissenso se transforma em conflito permanente, em incapacidade de composição, em guerra cultural contínua.

Quando isso ocorre, o Estado deixa de cumprir seu papel de mediador das relações sociais e se converte em agente da repressão. É nesse cenário que o autoritarismo encontra terreno fértil, e os autocratas, habilmente, passam a manipular o descontentamento popular, quase sempre amparados no falso e sedutor discurso de “restaurar a ordem”.

O papel do Estado, por meio do direito, não é eliminar as diferenças, mas organizá-las de forma a garantir a convivência coletiva. As leis são, ou deveriam ser, instrumentos civilizatórios — eficazes quando aplicadas com sabedoria, equilíbrio e parcimônia. O problema surge quando uma sociedade, incapaz de conviver com a pluralidade, transforma qualquer diferença em conflito judicial, todo desacordo em litígio, e qualquer comportamento que lhe desagrade, em crime.

O caminho civilizatório não é esse.

Uma sociedade verdadeiramente desenvolvida não se sustenta sobre pilhas de leis, mas sobre uma base sólida de educação, cultura, senso ético, respeito mútuo e uma justa distribuição de renda. Não se constrói civilização pelo excesso de normas, mas pela formação de cidadãos conscientes, capazes de entender que liberdade e responsabilidade são indissociáveis.

Enquanto continuarmos apostando nas leis como muletas para suprir nossa falência cultural e a ganância material de poucos, seguiremos alimentando um ciclo perverso: mais leis, mais repressão, menos liberdade — e, paradoxalmente, ainda menos ordem.

A pergunta que se impõe é tão simples quanto incômoda: queremos uma sociedade educada, socialmente justa e culturalmente madura — ou uma sociedade policialesca, regulada pela força e pelo medo?

João Antonio é conselheiro do TCM-SP e vice-presidente da Atricon