João Antonio da Silva Filho
A canção “Sangue Latino” nasceu da parceria entre João Ricardo, que criou a melodia, e Paulinho Mendonça, autor da letra. Lançada em 1973 no álbum de estreia do grupo Secos & Molhados, tornou-se um marco da música brasileira por sua força poética e simbólica. Na voz de Ney Matogrosso e na força criativa do grupo Secos & Molhados, ecoa como um canto antigo de resistência. Seu verso mais emblemático — “os ventos do norte não movem moinhos” — é mais que metáfora: é um aviso de que as forças que vêm de fora, especialmente do norte, por mais frias e ruidosas que sejam, não têm poder para acionar a engrenagem viva da nossa história.
Ali, nas entrelinhas, pulsa a dor e a altivez de um povo que nunca se rende. O “sangue latino” que escorre nas veias da canção fala de uma identidade feita de mistura, memória e luta, mas também de feridas abertas por séculos de exploração e injustiça. É uma alma cativa que mesmo acorrentada, nunca deixou de sonhar com a liberdade.
Há, nessa letra, a consciência de que os grilhões não são apenas de ferro, mas também de acordos, tratados e interesses impostos de fora para dentro. Romper esses ritos é gesto de coragem, é ato de reinvenção. Pois o verdadeiro sentido de existir está em não aceitar o jugo, mesmo quando tudo ao redor conspira para nos calar.
Quando a lança se parte e o grito ecoa no vazio, não é apenas um gesto de desespero, mas um ato de afirmação. É a recusa em ser subjugado e permanecer imóvel diante da injustiça — um brado que, ao mesmo tempo, denuncia e anuncia esperança. E assim, o verso da canção Sangue Latino, “o que me importa é não estar vencido”, ressoa mais alto do que qualquer decreto de silêncio, reafirmando a força de quem se recusa a ceder aos caprichos de interventores.
Lançada em 1973, sob o peso sufocante da ditadura, Sangue Latino tornou-se um símbolo de resistência cultural e política. Mas sua mensagem vai muito além daquele contexto histórico: fala de cada instante em que alguém — ou até mesmo uma nação inteira — ousa ser livre num mundo que insiste em impor correntes. É um canto que atravessa gerações, lembrando que liberdade e autodeterminação dos povos são ideais sempre inacabados — eternamente em construção.
Nenhuma nação, nenhum governante, por mais poderoso que seja, pode se arrogar dono do mundo.
E assim seguimos, teimosos como moinhos que se movem, acima de tudo, pelos ventos que sopram de dentro. Por mais frios ou fortes que sejam os ventos do norte, não abalarão as convicções dos brasileiros e dos latino-americanos. Não aceitaremos taxações injustas nem interferências disfarçadas de interesse econômico. A soberania brasileira não está à venda, nem é moeda de troca.
É com a brisa quente da dignidade, da unidade latino-americana e da coragem do povo brasileiro de não se render que fazemos girar a roda da história. E, no fim, o que nos resta — e isso é tudo — não é o gemido da derrota, mas o brado altivo de quem se recusa a ser vencido. Pois nosso sangue é latino, nossa alma é livre e, por mais fortes ou ruidosos que sejam, os ventos do norte jamais moverão o moinho da nossa história.
João Antonio da Silva Filho é conselheiro do Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCM-SP) e vice-presidente da Atricon