Cezar Miola
A Constituição de 1988 marca profundamente a história democrática brasileira ao estabelecer, a par de inúmeras conquistas civilizatórias, as bases para um modelo mais participativo, fortalecendo a cidadania e ampliando o acesso da população à gestão pública e às decisões políticas.
Fruto desse robusto conjunto de garantias, surgiram importantes regulações, como é o caso da Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011) e da Lei 13.460/2017, instituindo uma espécie de código dos direitos dos usuários do serviço público.
São exemplos de espaços capazes de produzir efeitos concretos e visíveis, haja vista que os serviços públicos tendem a se tornar melhores, transparentes e inclusivos. E, aproximando cidadãos de Poderes e órgãos, tais instrumentos também fortalecem a legitimidade das instituições e contribuem para qualificar o controle social e aprimorar as próprias políticas públicas.
Contudo, já se rumando para os 40 anos da nossa Carta, ainda é preciso avançar. Ao mesmo tempo, sabemos que a materialização dos diversos ganhos semeados pela Lei Fundamental envolve um processo que pressupõe compromisso político, esforço contínuo e infraestrutura, inclusive no plano digital.
E, nos dias atuais, há um elemento que retira muito dos argumentos já bastante invocados para se limitar (ou até impedir) ações inclusivas e dialógicas: hoje contamos com as ferramentas tecnológicas que viabilizam tal intento (sendo a inteligência artificial um dos mais eloquentes avanços). Se delas não se faz (bom) uso no âmbito da Administração Pública, é por razões situadas muito mais no campo das escolhas (ruins) de quem deveria adotar papel protagonista nesse círculo que tudo tem para ser virtuoso.
A participação cidadã não diz unicamente com promoção da justiça social; é um poderoso mecanismo transformador, capaz de cooperar substancialmente para o fortalecimento do regime democrático. Essa complementaridade, inclusive, contribui para decisões mais legítimas.
Nesse sentido, vale lembrar o disposto no parágrafo único do artigo 193 da Constituição (inserido pela EC 108, de 2020): “O Estado exercerá a função de planejamento das políticas sociais, assegurada, na forma da lei, a participação da sociedade nos processos de formulação, de monitoramento, de controle e de avaliação dessas políticas”. Urge, pois, que se faça a devida regulamentação, concretizando tão benfazeja inovação (e aqui fica uma respeitosa conclamação nesse sentido ao mesmo Congresso que aprovou a saudada e republicana mudança).
É em tal contexto que também emerge uma significativa oportunidade para os Tribunais de Contas do Brasil, colegiados com assento constitucional cuja relevante missão é indelegável no controle das ações governamentais. Assim, deixa-se agora uma modesta sugestão, pela qual essas cortes passariam a fomentar ainda mais mecanismos que estimulem a participação cidadã, não apenas junto aos próprios órgãos de controle (onde, aliás, já temos diversas experiências virtuosas em TCEs e TCMs, no TCDF e no TCU), mas, especificamente, tendo foco no conjunto dos milhares de entes fiscalizados.
Assim, o intuito da contribuição ora colocada é no sentido de que, dando um passo além, os TCs reconheçam, por exemplo, no momento da apreciação das respectivas contas (nos termos do art. 71, I e II, da CF), a atuação daqueles administradores que asseguram mecanismos ágeis e acessíveis para viabilizar o envolvimento ativo da cidadania em suas gestões (inclusive com o fornecimento das necessárias devolutivas), tudo de forma a garantir possibilidades reais de participação.
A avaliação e valorização pelos Tribunais de Contas no tocante ao nível de maturidade dos entes públicos em relação a esse diálogo com a sociedade tem o potencial de se tornar um importante estímulo aos gestores, representando ação premial indutora de benefícios múltiplos.
Evidentemente que há um pressuposto básico: é preciso que essa participação seja implementada materialmente, e não apenas no plano normativo ou formal, como tem acontecido, em muitos casos, no tocante a normas já vigentes.
Apenas para ilustrar, no controle externo nos deparamos, frequentemente, com audiências públicas previstas em leis como o Estatuto da Cidade e a Lei de Responsabilidade Fiscal que nada têm, concretamente, de dialógico e colaborativo. Em casos assim, pode-se dizer, o “verniz” é até pior, porque tenta edulcorar uma espécie de simulação, que só deprecia o mecanismo e traz frustração, desencanto e descrença da população nos agentes públicos e nas instituições.
Os Tribunais de Contas têm se dedicado cada vez mais a uma relação próxima com a sociedade civil, constituindo-se, assim, em autênticas casas da cidadania. A parceria estratégica entre esses atores não apenas contribui para prevenir e corrigir irregularidades, mas ajuda para que tenhamos entregas mais qualificadas nas diferentes políticas públicas, marcadas por eficiência, eficácia e efetividade.
Cezar Miola é conselheiro do TCE-RS e vice-presidente da Atricon
Artigo originalmente publicado no portal Jota em 31.07.2025