Uma reforma muito mais ampla do que parece

Edilson Silva e Cezar Miola

Discutida há mais de duas décadas sob diferentes governos, a reforma administrativa ganha novo impulso a partir do atual debate no Congresso Nacional. Embora importante para a modernização e qualificação do setor público brasileiro, essa reforma por vezes esbarra em controvérsias menores, que ofuscam o interesse verdadeiramente maior: os benefícios ao cidadão. Mas uma nova perspectiva pode mudar esse cenário.

Trata-se de aproveitar a ocasião para enfrentar alguns dos grandes desafios atuais da “máquina pública”, num contexto em que a sociedade cobra transparência, desempenho e qualidade nas entregas. Declarações recentes do relator do grupo de trabalho na Câmara, deputado Pedro Paulo (PSD-RJ), sinalizam que o momento é favorável. O parlamentar, que prepara o texto a ser apresentado à comissão especial da reforma, afirmou que irá incorporar à redação uma revisão anual de despesas e um sistema de avaliação das políticas públicas.

Acreditamos que esses objetivos podem contar com a colaboração dos Tribunais de Contas (TCs), órgãos neutros na estrutura do Estado. De um lado, cabe mencionar as contribuições já entregues pela Atricon à Câmara dos Deputados, relacionadas, em síntese, à valorização dos servidores e do serviço público. Por outro, entendemos por, respeitosamente, sugerir a inclusão de uma nova e específica abordagem no tocante às competências dos órgãos de controle. Com isso, cogitamos um acréscimo ao artigo 71 da Constituição, cuja essência poderia ser conformada em termos como: “XII – instituir, na forma da lei, mecanismos de reconhecimento de práticas administrativas inovadoras que qualifiquem a prestação de serviços à população e promovam a transparência, a eficiência e a eficácia na execução dos gastos públicos e na arrecadação das receitas”.

Nossa proposta encontra correspondência na Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101, de 2000), que previu a criação de um Conselho de Gestão (até hoje não aprovado), incumbido de, junto com outras importantes atribuições, instituir formas de reconhecimento quando se alcancem resultados meritórios nos respectivos entes. Aliás, tirar esse Conselho do papel também parece se colocar como uma das metas do relator, o que reforça a relevância da indução positiva como mecanismo de aprimoramento da administração pública.

Por vezes os Tribunais de Contas são referidos como causadores de entraves à inovação no ambiente governamental, alegando-se que sua atuação, supostamente intolerante com qualquer erro ou insucesso, implicaria o “congelamento” do administrador (em outras palavras, o dito “apagão das canetas”). A propósito, se, de um lado, tem-se o clamor coletivo por mais probidade e melhor performance no gasto público, relatórios de auditoria produzidos por TCs também indicam a existência de grandes investimentos públicos movidos essencialmente pelo que se convencionou chamar de “viés de otimismo”, ou, eventualmente, até por má-fé. Não raro, deparamo-nos com a aventura às custas do erário, sem se atentar ao planejamento, ao autocontrole e à avaliação de impactos.

Pois bem, é esse tipo de conduta que se busca impedir; jamais restringir o pensamento criativo e a adoção de alternativas “não convencionais”, que merecem ser estimuladas e valorizadas. Assim, a inserção do dispositivo ora proposto traduz mais uma manifestação concreta do controle no sentido de andar ao lado do gestor (sempre respeitada a moldura constitucional), fomentando a adoção de iniciativas de excelência.

Com efeito, a sugestão que aqui se coloca parte da convicção de que o controle externo não deve se restringir a apontar eventuais falhas ou irregularidades e a aplicar sanções (o que, induvidosamente, é seu dever). Também lhe cabe incentivar condutas éticas, transparentes e inovadoras, comprovadas por evidências. Ao reconhecer ações positivas, os Tribunais de Contas contribuem para prevenir desvios e consolidar uma cultura de integridade e boa governança, voltada aos interesses da cidadania. Repetindo: sem abdicar das suas funções típicas (de resto indelegáveis e inarredáveis), os órgãos de controle igualmente têm a possibilidade de destacar condutas virtuosas, estimulando relações de confiança, junto com o respeito ao regime democrático, às instituições da República e aos seus agentes.

Nesse sentido, os TCs podem exercer papel estratégico ao analisar as contas do gestor, identificando, registrando e destacando práticas que representem avanços, por exemplo, em searas como governo digital, modernização e racionalização administrativa, valorização dos servidores, controle interno, probidade, inteligência artificial, sustentabilidade e diálogo com a população.

Inúmeras experiências bem-sucedidas já mostram que a atuação pedagógica, preventiva e preditiva das Cortes de Contas, somada à solução consensual de controvérsias, ao acompanhamento continuado e à fiscalização, gera notáveis efeitos multiplicadores. São demonstrações de que esse movimento qualifica todo o ciclo das políticas públicas, desde o planejamento até a implementação e a avaliação, em sintonia com o princípio da eficiência administrativa.

O reconhecimento institucionalizado de práticas inovadoras também contribuirá para a consolidação dos Tribunais de Contas como verdadeiras casas da cidadania, ajudando, inclusive, a fortalecer sua legitimidade, além de fomentar uma relação de confiança com seus jurisdicionados e junto à sociedade.

Trata-se, acreditamos, de uma medida simples, impessoal, não onerosa, mas fortemente indutora e de grande potencial transformador, capaz de alinhar ainda mais os objetivos e compromissos do controle externo às demandas e necessidades contemporâneas.

Edilson Silva é presidente da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon) e Cezar Miola é ex-presidente e atual vice-presidente de Relações Político-Institucionais da entidade.

*Artigo publicado na edição do dia 1º de outubro do jornal Valor Econômico