A atuação da advocacia legislativa para além dos mitos

Grhegory Paiva Pires Moreira Maia
Ricardo Riva
João Gabriel Perotto Pagot

Em artigo publicado na revista eletrônica Consultor Jurídico, em 27 de dezembro de 2024, o procurador municipal Celso Bruno Tormena teceu considerações sobre a atuação dos procuradores legislativos, questionando a constitucionalidade da dispensa de controle de jornada desses profissionais. Segundo o articulista, a prerrogativa de não se submeter ao controle de ponto seria exclusiva dos procuradores do Poder Executivo, em razão da necessidade de cumprirem prazos processuais e participarem de audiências.

Ou seja, embora a incompatibilidade do controle da jornada de trabalho dos advogados públicos já esteja devidamente consolidada, principalmente após o julgamento do RE 1.400.161/SC e com a aprovação do enunciado 9 da súmula do Conselho Federal da OAB, o autor do texto tenta construir a tese de que os procuradores legislativos não fazem jus a tal prerrogativa inerente à advocacia pública.

Tal posicionamento revela um desconhecimento total tanto das nuances jurídicas que fundamentam a incompatibilidade do controle de jornada da advocacia pública (ponto I) quanto das complexas atribuições intrínsecas às procuradorias legislativas (ponto II). E embora a questão do controle de jornada não figure entre as principais preocupações da advocacia do Legislativo, é imperativo responder a esse tipo de posicionamento, para evitar ataques segregativos a outras carreiras – uma espécie de autofagia do serviço público.

Em primeiro lugar (ponto I), o ministro Fachin, ao proferir a decisão no RE 1.400.161/SC, em momento algum restringiu o usufruto da prerrogativa por parte da advocacia pública apenas à necessidade de atendimento aos prazos processuais. Estabeleceu, sim, que o controle de jornada é incompatível com a advocacia pública “ante a natureza de trabalho que compõe a profissão pela liberdade de atuação e flexibilidade de horários, inerentes à profissão”. O voto acompanha a linha disciplinada no artigo 7, inciso I do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil:

“Art. 7º São direitos do advogado:

I – exercer, com liberdade, a profissão em todo o território nacional;”

Diferentemente, portanto, do que sugere o articulista, o ministro Fachin não restringiu a prerrogativa à necessidade de cumprimento de prazos. A decisão é clara ao afirmar que a incompatibilidade decorre da “natureza do trabalho que compõe a profissão, pela liberdade de atuação e flexibilidade de horários, inerentes à profissão”.

O exercício livre da advocacia pública vai além da possibilidade de manifestação autônoma, mesmo quando tal posicionamento técnico divergir da vontade do gestor. Abrange, também, a independência e a flexibilidade na atuação funcional, transcendendo os limites físicos do local de trabalho (RE 1.400.161/SC). É relevante mencionar que o advogado público, seja no Executivo ou no Legislativo, além de assessorar e defender o ente ao qual está vinculado, tem o dever indeclinável de zelar pelo interesse público primário, logo, a liberdade, em seus múltiplos aspectos, é fundamental para o correto exercício da profissão.

A visão simplista de vincular a prerrogativa da advocacia pública ao atendimento de prazos processuais e comparecimento a fóruns diminui a importância da carreira como um todo. A advocacia pública vai muito além do contencioso judicial. Está no assessoramento jurídico o fator determinante que possibilita, com a prevalência da legalidade, a materialização de políticas públicas escolhidas pelo gestor de modo a promover as diretrizes constitucionais que visam contemplar os interesses e bem-estar da população. Sem falar que o advogado público protagoniza e propicia o novo paradigma consensualista do direito administrativo.

Em segundo lugar (ponto II), é igualmente equivocada a afirmação de que a advocacia do Legislativo não lida com prazos processuais ou compromissos públicos além da jornada regular. Tal assertiva demonstra um profundo desconhecimento de como funciona o Parlamento, e de como funciona sua advocacia.

À advocacia do Poder Legislativo compete uma gama complexa de atribuições, essenciais para o funcionamento harmônico do Estado Democrático de Direito. Sua atuação abrange tanto as atividades de consultoria e assessoramento jurídico, sejam elas relacionadas às atividades-fim, como a elaboração de pareceres sobre a constitucionalidade de projetos de lei, ou às atividades-meio, como a gestão administrativa interna, quanto a representação judicial e extrajudicial do Parlamento e de seus membros, quando em defesa das prerrogativas e competências institucionais (ADI 2.820).

O cotidiano do advogado legislativo é marcado pelo dinamismo e pela amplitude de suas responsabilidades. O acompanhamento e assessoramento semanal das sessões plenárias, das Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), das Comissões Permanentes, das Frentes e Grupos Parlamentares, bem como das audiências públicas e dos membros em seus diversos compromissos institucionais, exigem disponibilidade integral, que frequentemente extrapola a jornada regular de trabalho e as dependências físicas das Casas Legislativas. Essa intensa agenda, contudo, não exime o advogado do Parlamento do cumprimento de suas demais obrigações funcionais, como a elaboração de pareceres, a análise de contratos e a representação judicial.

Já no âmbito judicial, a advocacia legislativa transcende a nobre defesa de atos normativos em controle concentrado de constitucionalidade. Sua missão precípua, em consonância com o princípio da separação dos Poderes, é zelar pela autonomia, independência, competências e prerrogativas do Legislativo e de seus membros. A participação ativa das Advocacias da Câmara dos Deputados e do Senado na ADPF 854, que versa sobre a constitucionalidade das emendas parlamentares ao orçamento, é um exemplo emblemático dessa atuação, onde a defesa da autonomia do Parlamento na gestão dos recursos públicos foi crucial.

A advocacia das Casas de Leis realiza, ainda, a defesa das prerrogativas parlamentares “não só em relação aos Poderes Executivo e Judiciário, mas também frente a órgãos de envergadura constitucional e dotados de independência, como o Ministério Público, a Defensoria Pública e o Tribunal de Contas”, ponto este que também impõe o cumprimento de prazos processuais e a realização de compromissos públicos externos (RE 1.400.161/SC).

Além disso, a advocacia do Legislativo também desempenha papel na análise de constitucionalidade de proposições legislativas, na elaboração de estudos jurídicos e na defesa do Parlamento em demandas judiciais que envolvam suas competências e prerrogativas, conforme previsão constitucional. Ademais, vale ressaltar, a título de exemplo, que o STJ já reconheceu a legitimidade ativa ad causam das Comissões das Assembleias Legislativas para propor ação civil pública (REsp 1.098.804-RJ, rel. min. Nancy Andrighi, Informativo nº 458).

E não se trata de função nova, inventada recentemente. A gênese da representação judicial do Poder Legislativo e dos órgãos autônomos remonta à década de 1940, com a discussão sobre a personalidade judiciária das Câmaras Municipais, como bem apontado pelo ministro Victor Nunes Leal em seu artigo de 1949. A necessidade de uma advocacia especializada para os assuntos do Legislativo decorre da complexidade dos conflitos federativos e disputas interpoderes em sede judicia. Essa percepção, aliás, não se restringe ao Brasil, mas encontra modelos similares em países como Reino Unido, Estados Unidos, Alemanha e Áustria.

Convite à reflexão

Em suma, a advocacia do Poder Legislativo é pilar fundamental para a manutenção da harmonia entre os Poderes e para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito. Sua atuação, que vai desde o assessoramento jurídico interno até a defesa judicial do Parlamento, garante a independência e o regular funcionamento da instituição, contribuindo para a construção de um sistema jurídico sólido e para a efetivação dos princípios democráticos.

Certamente os colegas advogados públicos do Poder Legislativo, ao realizarem essa leitura, poderão indicar inúmeras outras atribuições e deveres que permeiam a complexa e dinâmica realidade do exercício da advocacia das Casas Legislativas, seja no âmbito federal, estadual, distrital e municipal.

Assim, antes de se tentar diminuir a relevância da advocacia do Poder Legislativo na ânsia de retirar direitos, convidamos a todos, aproveitando essa reflexão e esclarecimento, para um olhar mais aprofundado sobre a realidade do exercício desta competência indispensável ao funcionamento dos Parlamentos e, consequentemente, da democracia brasileira.

Grhegory Paiva Pires Moreira Maia é presidente da Associação Nacional dos Procuradores e Advogados do Poder Legislativo (Anpal) e procurador da Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso e consultor jurídico geral do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso.

Ricardo Riva é procurador-geral da Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso.

João Gabriel Perotto Pagot é subprocurador-geral Judicial e Extrajudicial da Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso.

Artigo originalmente publicado no portal Conjur em 15/01/2025