A lei da vida é que deve prevalecer
Cezar Miola.*
“Não adianta dizer: ‘estamos fazendo o melhor que podemos’. Temos que conseguir o que quer que seja necessário”. (Winston Churchill).
O Brasil e o mundo estão profundamente impactados com o quadro de pandemia. E é grande a apreensão acerca do que ainda poderá vir.
No contexto, o Poder Público se vê instado a agir sob forte pressão, de diferentes fontes. Por um lado, em razão dos indicativos de falhas no processo de planejamento, embora a avassaladora progressão do coronavírus derrube até as estruturas mais sólidas, aqui e em outros países. Junto com ele, alguns movimentos erráticos de esferas de comando sobre quais as diretrizes a serem observadas pelas pessoas e organizações. Assim, ao lado de orientações e determinações baseadas em evidências, emergem “palpites” e notícias falsas, que confundem e tumultuam o já tencionado ambiente. Precisamos de regras e comandos claros, embasados cientificamente.
De outra parte, deparamo-nos com um antigo – e por muitos desconsiderado – subfinanciamento na política pública da saúde, que, espera-se, será repensado depois dessa crise sem precedentes. A propósito, quiçá venhamos a tomar consciência de que a defesa do Sistema Único de Saúde significa zelar pelo bem da sociedade (que, aliás, é um dos objetivos fundamentais da República – art. 3° da CF). E que ninguém estará protegido enquanto todos não estiverem. Essa tutela é um papel do Estado, devidamente dotado com os recursos e demais meios necessários. Afinal, não é do mesmo Estado que agora esperamos e cobramos respostas?
Nesse cenário, considero importante que os nossos Tribunais de Contas possam exercer uma ação pedagógica, preventiva e de acompanhamento, especialmente no tocante às exigências colocadas na legislação para compras, contratação de serviços e realização de obras relacionadas à calamidade pública declarada. E assim já ocorre aqui no nosso Estado, onde o TC acaba de publicar uma cartilha de orientações, juntamente com a Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul – FAMURS.
A respeito, algumas questões pontuais ganham relevo, como no caso das contratações públicas, tratadas nas recentes Lei Federal 13.979 e Medida Provisória 926, ambas de 2020 (além, claro, no que couber, da conhecida Lei Federal 8.666/1993). O certo é que, mesmo em casos extremos, há requisitos básicos e cautelas que devem ser cumpridos para os respectivos certames (menos severos, é verdade, em face das especificidades do momento). Porém, mesmo nas situações em que não se possa formalizar um processo de licitação, deve-se buscar a melhor proposta, justificar os preços pagos, dar ampla publicidade à sociedade e aos órgãos de controle. E, obviamente, cabe demonstrar que essas contratações se referem exclusivamente ao atendimento das demandas geradas pela calamidade, para lhes dar tratamento e durante a sua vigência; nada além.
O ambiente de calamidade igualmente propicia a abertura de créditos extraordinários nos orçamentos, sem prévia autorização legislativa, conforme previsão constitucional e na Lei Federal 4.320/1964. Nos termos ali colocados, as mesmas circunstâncias excepcionais permitem que os recursos necessários ao enfrentamento das urgências e emergências da hora recebam um tratamento diferenciado.
Mas há ainda um outro componente a ser ponderado, talvez até de maior complexidade, tanto para o gestor quanto para o controle. De um lado, os limites ditados pela Lei Complementar 101/2000 – LRF para despesas de pessoal e, sobretudo, as vedações para o último ano de mandato (no caso dos Prefeitos, exatamente este). Estamos em “ano de eleições” (pelo menos é o que está estabelecido), o que nos remete a diferentes restrições, ditadas pela citada Lei Fiscal e por outras normas. Em especial, a proibição de, nos dois últimos quadrimestres deste exercício, serem efetivados gastos sem que haja suficiência de caixa (LRF – art. 42). A infração a tal comando também pode configurar crime.
Mais um exemplo: como lidar com os contratos de mão de obra, os “terceirizados”, os estagiários? Com o isolamento recomendado ou imposto, essas pessoas não irão trabalhar. A chamada “liquidação da despesa” fica prejudicada, na medida em que os serviços, em muitos casos, não estão sendo prestados. Mas, aqui, não se tratará, pelo menos a priori, da negligência ou da má-fé de quem quer que seja. A força das circunstâncias se impõe, de modo a impedir que os já hipossuficientes não devem arcar com esse ônus.
Outras narrativas poderiam ser colocadas, mas já é possível dizer que se está diante de um quadro que nos exige elevado sentido de razoabilidade e de proporcionalidade, a ser devidamente considerado. Gestores zelosos, preocupados em cumprir a lei e atentos às cobranças dos órgãos de fiscalização, poderão se deparar com alguns dilemas; verdadeiras escolhas trágicas.
Não se pretende, aqui, nenhuma concessão a condutas ilícitas ou ímprobas. Antes, faz-se a defesa da Constituição e das leis; da boa governança e da gestão eficiente e eficaz.
Todavia, é preciso ponderar os mesmos princípios referidos e daí extrair uma luz ao gestor de boa fé que, na especificidade absoluta do quadro, se veja diante de opções dificílimas, mas onde uma poderá ser desastrosa: ficar jungido a comandos restritivos e, com isso, dependendo do caso, contribuir para o perecimento de vidas em proporção que não se pode dimensionar.
Parece certo que a legislação específica deverá ser aperfeiçoada, porque até mesmo as exceções previstas em lei ainda não foram capazes de prever, com clareza, o cenário tenebroso hoje vivido e trazer respostas exaustivas para os seus reflexos. Mas, enquanto isso não ocorrer (e se sabe que há vários estudos e debates com esse objetivo), é possível, dentro do sistema, encontrar a solução adequada.
Desse modo, os administradores públicos, com a elevadíssima responsabilidade que lhes recai nestas horas, precisam, sim, se acautelar, adotando as medidas em defesa da boa e correta aplicação dos recursos do tesouro, o que inclui a busca dos melhores preços e condições; adotando boas práticas e dando radical transparência aos seus atos.
E se, nesse esforço em defesa do interesse público, tiverem implementado todas as iniciativas prudenciais (ajustando gastos onde possível, otimizando receitas e racionalizando a gestão) e, ainda assim, se virem na perspectiva de algum desentendimento às normas vigentes, isso haverá de ser devidamente valorizado. O temor da sanção, o chamado “apagão das canetas”, nesse contexto, não poderá inibir a ação. Adaptando a célebre mensagem de Teresa de Ávila: nessas circunstâncias, nada pode perturbar, nada pode espantar.
Não se ousa pretender falar em nome das instituições de controle, mas sim em caráter personalíssimo, sem pré-julgar. Apenas se busca colaborar, sinalizando com possíveis caminhos, de tal modo que, se for esse o quadro encontrado quando do exame das respectivas contas, ele será devidamente avaliado, contextualizado e considerado.
É possível, claro, que venhamos a nos deparar com alguns administradores públicos inescrupulosos ou ineptos, capazes de se aproveitar deste ambiente de perplexidade para buscar benefícios ilícitos ou ganhos políticos às custas da população angustiada. Sim, poderemos ter que lidar com esses maus representantes, e ainda com eventuais fornecedores oportunistas ou fraudadores.
Serão uma minoria, certamente, sobre os quais haverá de incidir a força da lei quando comprovada a ilicitude. E que também enfrentarão a repulsa da sociedade, informada e consciente que está do papel que cada um está representando nestas horas.
Entretanto, agora, o que se quer enaltecer é a confiança, serenidade, a resiliência e a solidariedade que marcam a maciça maioria das ações de agentes públicos, sociedade civil e empresários, estimulados pela imprensa consciente do seu extraordinário papel e das redes verdadeiramente sociais.
Assim, urge tratar da população necessitada, sobretudo daquela a quem não se torna possível o isolamento social e que precisa estar na linha de frente; cuidar dos desprotegidos; dos incontáveis que estão ou ficarão ao desamparo; ajudar mulheres e homens com a grande incumbência de tomar as decisões duras, urgentes e arriscadas. É por isso que, em se identificando a boa fé, o zelo com o interesse público e a absoluta transparência dos atos, não se poderá cogitar de sanção. A vida sempre falará mais alto!
* Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do RS.