Valdecir Pascoal
Um livro pode ser um refúgio, uma ponte, uma luz. Foi assim que comecei o artigo publicado neste mesmo espaço, em março do ano passado, intitulado “A felicidade pela leitura”. Nele, compartilhei memórias da infância no sertão, quando a simplicidade do lar era compensada pelo valor inestimável da leitura. Falei das estantes cheias de gramáticas e romances, da capa marrom de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, da felicidade clandestina de Clarice Lispector e da esperança que brota quando a alfabetização – essa aliança mágica e consciente das letras – chega na hora certa.
Hoje, volto ao tema com os olhos voltados para o futuro, mas sem esquecer o caminho percorrido. A educação, sobretudo a alfabetização infantil, continua a ser uma das causas prioritárias do Tribunal de Contas de Pernambuco (TCE-PE), que, não de hoje, vem ampliando seu olhar para além da formalidade dos gastos públicos, com foco cada vez mais firme na efetividade das políticas públicas — ou seja, em avaliar se os recursos aplicados estão, de fato, impactando, para melhor, a vida das pessoas. Um novo tempo exige um novo controle. E essa nova vigilância se faz com dados, sim, mas também com empatia, escuta de todos os atores da causa e compromisso com a dignidade da infância.
Em 2024, o TCE-PE deu um passo importante com a criação do ICA – Índice de Compromisso com a Alfabetização. Trata-se de uma ferramenta diagnóstica que avalia as condições mínimas para que a criança aprenda a ler e a escrever na idade certa. Avaliamos cinco eixos: legislação, adesão aos programas nacional e estadual, formação de professores, material didático e monitoramento da aprendizagem. O primeiro ciclo do ICA mostrou um cenário preocupante: 85% dos municípios pernambucanos apresentaram uma realidade bastante desafiadora, com uma média de 4 numa escala que vai até 10. A realidade era dura, mas a história do controle mostra que enfrentar com seriedade os diagnósticos é o primeiro passo para a ajudar a transformação.
Passado um ano, voltamos nossos olhos para os novos dados recém divulgados pelo Ministério da Educação. O Indicador Criança Alfabetizada, parte do Compromisso Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (CNCA), revelou que o Brasil atingiu, em 2024, 59,2% de crianças alfabetizadas até o 2º ano do ensino fundamental. Em Pernambuco, o índice foi ligeiramente superior: 60,8%. Em 2023, havíamos alcançado 59%. Considerando que partimos de 28% em 2021, no período pós-pandemia, e que o Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica) de 2019 mostrava 45%, trata-se de uma importante evolução. É preciso lembrar: esses números não são apenas estatísticas: são vidas em transformação. São meninas e meninos que agora conseguem compreender um bilhete da mãe, decifrar os mistérios de um conto, acessar direitos e imaginar futuros.
Mas não nos enganemos: o caminho ainda é longo. O compromisso firmado pelo Brasil e por Pernambuco é chegar a 80% de crianças alfabetizadas até 2030. Para isso, será fundamental fortalecer a sinergia entre avaliação e gestão, entre o Indicador Criança Alfabetizada, que mede os resultados, e o nosso ICA, que avalia as condições de partida e o esforço institucional dos municípios.
O ICA, ao mapear falhas e orientar melhorias na gestão municipal, fortalece a implementação do CNCA, impactando positivamente o desempenho do Indicador Criança Alfabetizada. Essa sinergia entre os dois indicadores é essencial para alcançar as metas de alfabetização e promover equidade educacional dentro do nosso Estado.
Como um maestro que afina os instrumentos antes do concerto, o TCE-PE — com o apoio dos próprios gestores municipais, da Amupe, da Undime, Uncme, dos órgãos estaduais de educação e da Academia – continuará comprometido em ajudar a estimular os acertos e as boas práticas, apontar correções e avaliar os resultados. Fiscalizar, no nosso caso, é sinônimo de cuidar. E cuidar da alfabetização é plantar justiça desde o berço. E nesse esforço coletivo, vale refletir sobre o que disse o professor Mozart Neves, ao analisar os últimos dados de alfabetização: “Precisamos aumentar a temperatura da mobilização por essa causa. É preciso incentivar uma febre de alfabetização, pois ela é o alicerce de todo o processo educacional”
Já se disse, numa inspiração freiriana, que “A leitura é uma dádiva, um instrumento de liberdade. Ler é buscar sentido e dar sentido”. Na mesma linha, uma passagem recente de Leandro Karnal renova nossa esperança: “Hoje, ler é um ato revolucionário. O hábito produz uma forma rara e refinada de pensar… A mente, que antes vagava, começa a habitar-se. E aí, começa a liberdade”.
Valdecir Pascoal é presidente do TCE-PE é ex-presidente da Atricon