Inaldo da Paixão Santos Araújo
Ao indagar a um dileto amigo se ele havia lido meu último artigo, ele, de pronto, condicionou que o faria após eu ler a sua tese, que ele acabara de me enviar e sobre a qual eu deveria elaborar uma resenha.
Confesso que o desafio, de início, me assustou, pois o título, por si só, já mereceria uma dissertação e não uma simples resenha. Como comentar em poucas linhas um texto com essa envergadura de título: “A Hibridez Material das Cortes de Contas como Atributo Determinante de sua Organicidade e a Metamorfose Institucional dos Tribunais da Governança Pública”?
O trabalho em tela foi elaborado pelo talentoso Conselheiro Adircélio de Moraes Ferreira Júnior, em seu doutoramento em Direito, na Universidade Federal de Santa Catarina.
O autor aponta que a reafirmação da natureza híbrida (órgão julgador e de fiscalização) dos Tribunais de Contas brasileiros é um atributo determinante da organicidade dos entes de controle da administração pública desenhada pela Carta Magna brasileira e é um elemento fundamental para a sua identidade, para a efetividade de sua atuação e, até mesmo, para a sua sobrevivência institucional.
Essa premissa, afirma o hoje doutor em Direito, tem como consequência direta o impacto no modo como as Casas de Contas devem auto-organizar-se diante do histórico deficit de legitimidade do qual padecem os órgãos de controle, da crescente hipertrofia do Judiciário e do maior protagonismo do Ministério Público nos últimos tempos. Tais fenômenos terminam por gerar nas Cortes de Contas uma verdadeira crise de identidade que revela consequências no modo como essas instituições exercem ou deixam de exercer suas competências constitucionais.
É nesse contexto que se faz necessário estabelecer um novo paradigma de atuação dos Tribunais de Contas, os quais, superando a acepção clássica do termo “contas”, transformam-se em verdadeiros Tribunais da Governança Pública, como atores necessários para um melhor funcionamento do aparato estatal, trazendo, com isso, benefícios para a nossa sociedade, assim pontua o Conselheiro.
A consciência crítica institucional acerca da hibridez material das Casas de Controle ganha ainda mais importância no cenário de metamorfose social, acentuada pela revolução digital e pela necessidade de uma maior efetividade das políticas públicas, demandando das instituições transformações profundas.
É preciso analisar criticamente e repensar a forma de atuação dos órgãos de controle, a fim de que identifiquemos qual o real papel dos Tribunais de Contas, como essas instituições podem e devem exercê-lo e, ainda, quais podem ser suas contribuições e entregas efetivas para os indivíduos e para a coletividade.
Essa ressignificação tem relação direta com a análise acerca da natureza híbrida dos Tribunais de Contas como um elemento orgânico essencial, de ossatura constitucional, que termina por defini-lo ontologicamente e distingui-lo das demais instituições democráticas e republicanas.
Nesse sentido, é possível concluir, segundo o autor, que a partir de um ambiente inovador no âmbito da administração pública, será instaurado um ciclo virtuoso que se retroalimenta de boas e inovadoras práticas na gestão e no controle públicos.
Sim, sem dúvida, uma tese que apresenta várias teses para os Tribunais de Contas ou de Governança dos novos tempos.
Contudo, inspirado na tese que muito me fez refletir, algumas indagações surgiram-me: será que há instituições que insistem em rastejar como lagartas pensando que são borboletas? Será que há instituições que querem voar sob o sol, mas sem perder sua natureza de corujas? Será que há instituições que querem assumir competências sem o imprescindível respaldo constitucional? Será que o controle prévio não seria voltar aos Tribunais de Contas de Ruy? Qual o controle de que a sociedade carece e qual ela merece? Será que razão assiste ao ministro emérito do STF, Carlos Ayres Britto, apud pelo Conselheiro Adircélio, que, ao abordar as disfunções dos Tribunais de Contas, afirma que os órgãos que formam o aparelho de Estado ou funcionam bem, ou tendem a embotar? “E pelo embotamento operacional, assujeitam-se mais e mais a pressões sociais de pura e rasa extinção”? Como ter luzes para responder a essas indagações sem ler a tese de Adircélio?
Sim, o trabalho do amigo é grandioso e idealiza um Tribunal da Governação (como, assim penso, os portugueses preferem traduzir, corretamente, o termo governance). Eu, em face das minhas limitações e origens, já me contentaria com um tribunal chamado de Casa de Auditoria (a rima não foi intencional). Sim, uma Casa de Controle que, tempestiva e sistematicamente, com transparência, dialogasse com a sociedade para tentar mostrar o melhor caminho das contas e das coisas do povo, sem nunca ter a veleidade de dominar a verdade (mais uma rima, porém agora não foi ocasional).
Gostei do que vi, do que li e do que entendi, se é que compreendi.
Enquanto aguardo o livro, que por certo há de vir, fico emocionado quando o autor dedica seus esforços à memória do Professor e Reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo, seu orientador no mestrado e no doutorado, citando que “Das muitas lições que ele nos deixou, talvez a maior delas tenha sido escrita, por linhas tortas e de maneira trágica, no momento de seu passamento. No entanto, lamentavelmente, parece não ter sido aprendida até hoje, nem pelas pessoas nem pelas instituições”.
Inaldo da Paixão Santos Araújo é Mestre em Contabilidade, Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado da Bahia, Professor da Universidade do Estado da Bahia. Vice-presidente de auditoria do Instituto Rui Barbosa, Escritor.