Por Inaldo da Paixão Santos Araújo*
É comum os livros e manuais sobre auditoria governamental considerá-la como atividade independente, sistêmica e objetiva que deve se apoiar “em fatos e evidências que permitam o convencimento razoável da realidade ou a veracidade dos fatos, documentos ou situações examinadas, permitindo a emissão de opinião em bases consistentes”. Assim, em resumo, auditar é buscar a verdade, o que é certo, o que é justo.
O jurista austríaco Hans Kelsen inicia sua obra “O que é justiça?” indagando o que é a verdade. Ao fazê-lo, o positivista relembra passagem do Livro na qual é retratado o julgamento do Rei dos Reis por Pilatos (João 18:38).
Monteiro Lobato, no clássico Memórias da Emília, também ilustra, mas com graça, essa passagem bíblica na fala de Dona Benta para a boneca de pano Emília:
“– Acho graça nisso de você falar em verdade e mentira como se realmente soubesse o que é uma coisa e outra. Até Jesus Cristo não teve ânimo de dizer o que era verdade. Quando Pôncio Pilatos lhe perguntou: ‘Que é verdade?’, ele, que era Cristo, achou melhor calar-se. Não deu resposta.”
Rememorei, de logo, essas duas formas de citação de fragmentos bíblicos, tão somente para que fique claro que não se pretende aqui filosofar sobre a verdade. Por mais que se desejasse, não seria possível. A formação do escriba e o espaço teriam que ser outros.
Entretanto, restringindo-se a questão ao universo auditorial, a verdade está relacionada ao critério, ao dever-ser, que serve de fundamento para a opinião do auditor. Isso posto, esse profissional, antes de iniciar seus trabalhos, deve se questionar se o critério utilizado, e não um outro, é o mais adequado. A indagação que deve ser feita é: por que esse critério, e não aquele?
Nessa busca do opinar com fundamento, o auditor deve agir com rigor metodológico e, principalmente, ética, senso crítico, imparcialidade e independência na aplicação de procedimentos de auditoria. Mas ele precisa também ter convicção de que não está imune a erros. Afinal, onde está a certeza, a verdade?
Sendo assim, por prudência, nessa busca pela “veracidade dos fatos”, o auditor deve tomar os cuidados possíveis e, mais do que saber questionar, é preciso saber ouvir.
Sobre o bem ouvir, é bom lembrar o que o jornalista Carl Bernstein, citado por Di Franco, afirma em relação ao jornalismo, mas que, por analogia, aplica-se à auditoria: “O importante é saber escutar […] As respostas são sempre mais importantes que as perguntas que você faz. A grande surpresa no jornalismo é descobrir que quase nunca uma história corresponde àquilo que imaginávamos”.
O auditor precisa saber indagar, mas mais ainda saber ouvir. Dessa forma, ele terá a possibilidade de ultrapassar o texto e compreender o contexto. Afinal, entre o fato e sua versão pode haver uma diferença abissal, que somente com muita acuidade poder-se-á enfrentar.
Assim, o auditor, antes de concluir seu relatório, deve autoindagar-se: é isso mesmo que eu preciso reportar? Inexiste dúvida cabível? Pois, como bem-posto por Américo de Sousa, no artigo “A retórica da verdade jornalística” (disponível em http://bocc.ubi.pt/pag/sousa-americo-retorica-verdade-jornalistica.html) é fácil concluir que antes de ser relatada “a verdade já há de ser verdade, simplesmente”.
Em arremate, como a auditoria governamental possui alto grau de responsabilidade social, é preciso se ter todo o cuidado ao se relatar, pois palavras mal postas prejudicam, distorcem, maculam e destroem reputações. Torna-se imperioso, portanto, reportar as constatações auditoriais com base em critérios não somente legais, mas adequados, justos, sem subjetivismo e verdadeiros. A dificuldade reside, entretanto, justamente em saber o que é justo e o que é verdadeiro.
(*) Mestre em Contabilidade. Conselheiro-presidente do Tribunal de Contas do Estado da Bahia. Professor. Escritor.