Academia do Consenso: FGV-Direito Rio e o futuro do Direito Administrativo

A consensualidade afirma-se como a quintessência do Direito Administrativo moderno. Se, durante décadas, a identidade do Estado foi marcada pela unilateralidade de suas decisões, a realidade contemporânea revela que a complexidade da vida econômica e social não se deixa aprisionar por modelos rígidos. O interesse público, longe de se opor ao diálogo, encontra nele sua forma mais refinada, capaz de preservar investimentos de longo prazo, assegurar a continuidade de serviços essenciais e reduzir a incerteza que paralisa mercados e sufoca a inovação.

O Tribunal de Contas da União teve o mérito de inaugurar esse movimento no Brasil, ao criar a Secretaria de Solução Consensual de Conflitos, a SecexConsenso. Foi a primeira vez que uma instituição de controle assumiu a mediação técnica de litígios contratuais de imensa complexidade, envolvendo parcerias público-privadas e concessões de infraestrutura com aportes bilionários. A experiência demonstrou que a mediação institucional não enfraquece o controle, mas o revigora: destrava investimentos, recompõe equilíbrios e confere previsibilidade ao ambiente regulatório.

A partir desse marco, multiplicaram-se iniciativas de agências reguladoras, advocacia pública e tribunais de contas estaduais, todos inspirados no pioneirismo do TCU. Formou-se um campo plural, em que diferentes instituições passaram a experimentar arranjos de governança consensual, sinalizando que o Brasil estava diante de um novo paradigma administrativo.

Sistematizar a experiência

É nesse contexto que nasce a FGV Consenso, iniciativa da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas. O hub foi concebido para sistematizar a experiência acumulada, monitorar a evolução da consensualidade, criar indicadores, elaborar metodologias e difundir boas práticas. A missão é ambiciosa: transformar a inovação institucional em teoria, método e política pública. A academia, assim, assume o papel de consolidar o que o controle iniciou, elevando a consensualidade ao patamar de objeto científico e referência internacional.

O desafio, entretanto, não se limita ao diagnóstico. A consensualidade confronta-nos com a incompletude inevitável dos contratos e das normas. Oliver Hart, Bengt Holmström e Eric Maskin demonstraram que nenhum arranjo jurídico é capaz de antecipar todas as contingências, e que apenas mecanismos de governança adaptativos reduzem custos de transação e asseguram a resiliência dos pactos de longo prazo. Douglass North, por sua vez, ensinou que a previsibilidade institucional é condição indispensável ao desenvolvimento. A consensualidade responde a essas lições com precisão: é método de gestão da incerteza, é técnica de preservação da confiança.

A experiência internacional confirma essa tendência. Na França, o Conseil d’État exerce papel singular ao analisar previamente a modelagem jurídica e econômica dos contratos de concessão e das parcerias público-privadas. Cabe-lhe validar, antes da licitação, a arquitetura dos editais e instrumentos, assegurando sua racionalidade e prevenindo litígios futuros. Além disso, o Conseil mantém uma câmara de mediação destinada à resolução consensual de disputas administrativas. Enquanto a Corte de Contas francesa se concentra na fiscalização da execução contratual, o Conseil atua como árbitro preventivo da modelagem, garantindo segurança jurídica desde a origem.

No Brasil, ambas as funções — a fiscalização e a mediação — convergiram no TCU, que assumiu papel de equivalente funcional à tradição francesa. A criação da SecexConsenso aproximou-nos do modelo europeu, mas com uma peculiaridade: foi um tribunal de contas, e não um conselho de Estado, que tomou a dianteira. Isso reforça o caráter inovador do caminho brasileiro e explica por que nossas experiências começam a atrair interesse internacional.

Saudar a criação da FGV Consenso é, portanto, mais do que celebrar uma iniciativa acadêmica. É reconhecer que o Brasil ingressa em uma segunda fase de sua trajetória: a primeira, marcada pelo pioneirismo institucional do TCU, inaugurou a prática; a segunda, agora em curso, cabe à academia, que deve sistematizar dados, comparar experiências, propor métodos e formar uma geração de gestores aptos a pensar e praticar a consensualidade.

Não estamos diante de um apêndice do Direito Administrativo. O consensualismo é a sua quintessência, a forma mais alta de realização de sua vocação histórica. É a síntese que concilia legalidade, eficiência e integridade em sociedades complexas. Ao criar a SecexConsenso, o TCU pautou o debate nacional. Ao lançar a FGV Consenso, a academia brasileira assume a tarefa de projetar esse debate ao mundo. É a confirmação de que a consensualidade não é apenas uma técnica de gestão, mas a expressão da razão pública no século 21.

Bruno Dantas é ministro e ex-presidente do TCU