Nestas três décadas de atuação no TCE-PE, e depois de ter presidido a associação nacional dos membros dos Tribunais de Contas (TCs), a Atricon, por dois mandatos – o que me permitiu uma visão de todo o sistema de controle externo brasileiro –, reflito sobre o quanto ainda é paradoxal a imagem dessas instituições perante alguns segmentos da sociedade. O que são, de fato, e o que parecem, aos olhos de alguns?
Esta situação me remete à famosa fábula “O Velho, o Menino e o Burro”, de Esopo. Vale relembrar sua essência. O Velho decidiu vender o seu Burro e convidou um Menino para ir com ele à cidade. Para preservar a aparência saudável do animal e, assim, conseguir melhor preço, resolveu que eles não iriam montados. Mas havia pessoas no meio do caminho. As primeiras logo disseram: “Como pode deixar o animal livre e uma pobre criancinha a pé?” O Velho pôs o Menino sobre o Burro e seguiu adiante. Não tardou para ouvir de outro grupo: “O Senhor, com idade avançada, é quem deveria ir montado”. O Velho, então, montou no Burro junto com o Menino. Não deu outra, logo ouviram: “Como têm coragem de sobrecarregar esse pobre animal?” Querendo evitar mais críticas, eles desceram e amarraram o Burro numa madeira, carregando-o nas costas. As pessoas, então, riram deles, chamando-os de tolos. Moral da fábula: é impossível agradar a todos.
Volto à realidade dos TCs, deixando claro, de antemão, que a causa mais plausível para as visões distorcidas sobre eles é o desconhecimento. A última pesquisa nacional (Ibope, 2016) cravou que apenas 17% dos brasileiros possuem alguma compreensão de seu papel.
Aprofundo um dos paradoxos. Para uma parcela da sociedade, os TCs são órgãos que não punem como deveriam e não evitam desperdícios. Seriam complacentes, órgãos de “faz de conta”. Noutro extremo, alguns gestores apontam o rigor excessivo desses Tribunais, o viés punitivista e a pouca empatia em relação aos contextos e obstáculos enfrentados por eles no dia a dia da gestão, levando ao chamado “apagão” das suas “canetas”, pelo medo de agirem e serem punidos. Também se queixam do ativismo desse controle, que, não raro, invadiria aspectos da estrita alçada da gestão.
O que fazer diante de críticas tão antagônicas? Agir qual o Velho da fábula e, refém do vento da hora, tentar agradar a todos, a cada crítica? Ou simplesmente “seguir o caminho e deixar que as pessoas falem” (“segue il tuo corso, e lascia dir le genti”) como disse Dante, na Divina Comédia?
Nada de extremos. Nem uma coisa, nem outra. É preciso estar ciente e seguro das forças e fraquezas institucionais; ter coragem para não querer agradar a todos (e até ser contramajoritário, quando couber), pois as opiniões são, muitas vezes, emocionais e mutantes; dosar as carências e vaidades pessoais e corporativas; investir em comunicação, refletir com serenidade sobre as críticas e não esquecer o contexto de policrises que o mundo vive.
O fato é que são inegáveis os avanços que essas instituições tiveram após a CF/88. Exemplos? A profissionalização, via concursos, de seu quadro de servidores, um dos
melhores da Administração Pública; o novo modelo de indicação de seus membros, exigindo requisitos de ordem ética, técnica e de experiência; o papel educador, robustecido pela criação das Escolas de Contas; o aumento do espaço dialógico com os gestores, por meio de audiências, ajustes de gestão e, mais recentemente, pela mediação de conflitos; o estímulo à transparência e ao controle social, a partir de suas Ouvidorias e Portais de Transparência; a contribuição à boa governança, por meio da avaliação de políticas públicas; a atuação preventiva e saneadora, conferida pelas medidas cautelares; e, decerto, o tradicional controle da regularidade das contas, que, em casos graves, pode gerar responsabilização e sanções.
Como aqueles que cruzaram o caminho do Velho da fábula, alguém poderia indagar: – Então, está tudo uma maravilha? As críticas são todas injustas? Claro que não, diríamos. O aprimoramento das instituições é um processo contínuo. A despeito de todo esse progresso citado, cabem autocríticas e novos avanços. Tudo pode ser melhorado, a começar pelas assimetrias entre os 33 TCs brasileiros. Lutar a boa luta pela máxima efetividade do atual modelo de TCs e debater aprimoramentos é um dever e uma necessidade.
No entanto, no meio do caminho há também os críticos radicais, pedras em forma de “falsos Schumpeters” (economista austríaco que criou a teoria da “Destruição Criativa”). Aqueles que, revelando ignorância, preconceitos, ressentimentos ou simples desprezo pelas instituições, pregam, sem corar, o fim, a privatização ou a asfixia desses órgãos (*). Diante de tamanho desatino, talvez fosse melhor seguir o conselho de Dante e não perder tempo. Afinal, são Lobos institucionais. Explico: na clássica fábula “O Lobo e o Cordeiro”, o Lobo quer comer o Cordeiro e tenta justificar seu desejo acusando-o de coisas absurdas. O Cordeiro refuta, logicamente, cada acusação, mas o Lobo, predador nato, deseja devorá-lo mesmo assim. Ocorre que o que prevalece hoje é a versão da fábula contada por Millôr Fernandes. E nesta, vale conferir, é o Lobo quem desaparece.
(*) A propósito da insólita proposta de substituição do sistema Tribunais de Contas pelo modelo de auditorias privadas, vale a leitura do artigo “Controles público x privado: das dicotomias que ainda resistem”, do Conselheiro Cezar Miola, Presidente da Atricon. Leia aqui: bit.ly/477BXG6.
Valdecir Pascoal – Conselheiro do TCE-PE.