Assim falou o orçamento
Valdecir Pascoal
Poucas vezes fui tão maltratado. Sinto-me cancelado. Se antes já me chamavam de “ficção”, pois nem tudo o que eu prometia saía do papel, hoje eu sequer existo. Tenho meus princípios. Dois deles – anterioridade e anualidade – obrigam Executivo e Legislativo a pensarem em mim antes mesmo que eu exista, pois um dos meus objetivos é planejar receitas e despesas públicas para o ano seguinte. Mas já estamos em março, sob águas de um trágico tsunami na saúde e na economia, e os responsáveis pela minha existência ainda estão inertes.
Compreendo as tensões que marcam a minha elaboração e aprovação. Estão no meu DNA. Meus antepassados, já na Inglaterra de 1215 e no Brasil dos Séculos 18/19, atestam que sou fruto do processo civilizatório. Aos poucos, revoltas e guerras foram dando lugar a discussões e debates, prevalecendo o voto da maioria dos representantes do povo, e não a força da pólvora. Vindo sob forma de lei, além de encarnar um documento técnico destinado a escolher a melhor alocação de recursos, passei a ser, ademais, um pilar da democracia. O fato é que, tendo a missão de retratar quem financia as políticas públicas e decidir a quem estas se destinam, o meu processamento gera conflitos mesmo em países desenvolvidos. A propósito, a série “Borgen” (Netflix) mostra que até no exemplar “reino” da Dinamarca pode haver algo de “podre” na minha apreciação.
Nada comparável, porém, ao que assistimos nestes trópicos. Para piorar a desfeita comigo, apresentou-se, nestes dias, uma emenda para extinguir os históricos pisos constitucionais na educação e na saúde, isso em plena pandemia, em que essas áreas, via Fundeb e SUS, são as mais necessitadas. Lembro que a vinculação de receitas na educação só deixou de existir no Brasil nas 2 ditaduras. É verdade: tenho um outro princípio que recomenda a não afetação prévia de minhas receitas, mas isso, claro, nas “CNTP”. Aprimorar o mecanismo de vinculação para garantir maior eficiência nos gastos é dever. No entanto, rememorando os antecedentes e vendo, p. ex., que, no pior da tragédia, o Parlamento me escanteia, preferindo discutir “imunidade”, o cidadão, ressabiado, mandou um recado certeiro: – NÃO, nunca houve e ainda estamos longe das “condições normais”.
Lembrem: eu existo para dar vida à CF e aos Direitos Fundamentais. O meu cancelamento é mais um sintoma do esgarçamento do bem comum e dos valores republicanos e democráticos. Mereço mais respeito.
PS: Retomar a disposição que norteou a aprovação do regime fiscal extraordinário, no início da pandemia, é um bom recomeço. Aviem!
Valdecir Pascoal – Conselheiro do TCE-PE