Valdecir Pascoal
“Tribunais de Contas: o controle das políticas públicas e a comunicação social como antídotos para a crise das instituições e da democracia.”
Esse foi o tema da palestra que proferi semana passada na Faculdade de Direito de Lisboa, no VIII Seminário Ibero-Americano de Direito e Controlo, organizado pela Universidade de Lisboa, o Instituto Rui Barbosa e o Tribunal de Contas de Portugal. A seguir, compartilho a primeira parte das minhas reflexões no evento, cujo tema geral foi “A Justiça, a Democracia e o Controle na Era Digital”.
Começo por uma contextualização da atual crise da democracia e de suas instituições.
Quando analisamos os últimos cem anos pelos ponteiros mais precisos do relógio da história, é inevitável reconhecer que a democracia avançou de maneira significativa em todo o mundo. O cientista cognitivo Steven Pinker, professor de Harvard, em seu notável livro ”O Novo Iluminismo”, evidencia essa tendência de forma irrefutável. No entanto, ao olharmos mais de perto para a última década, testemunhamos uma preocupante erosão desses avanços em escala global. O aumento das tensões institucionais e a ascensão de líderes com tendências autocráticas e populistas, amplificadas pelos algoritmos distópicos das mídias digitais (frequentemente a serviço da desinformação), vêm colocando em risco as instituições que sustentam o arcabouço democrático. Isso também desperta na sociedade sentimentos de intolerância, ressentimento e de desconfiança no Estado e na própria democracia.
A crise atual tem importantes marcos históricos, como os protestos de junho de 2013 no Brasil, o Brexit no Reino Unido em 2016, os ataques ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021 nos Estados Unidos e o episódio de 8 de janeiro de 2023 em Brasília. Esses fatos, como vimos, ocorrem em meio ao avanço descontrolado das mídias digitais e ao imenso poder das Big Techs, como ilustra o recente imbróglio envolvendo a empresa “X” (ex-Twitter) e o STF. A literatura que analisa em profundidade a crise e as suas causas é vasta, destacando-se os livros “Como as Democracias Morrem” e “Como Salvar as Democracias”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt; “Os Engenheiros do Caos”, de Giuliano Da Empoli; “Crepúsculo da Democracia”, de Anne Applebaum, “Corredor Estreito” e “Poder e Progresso”, de Daron Acemoglu e James Robinson, “Biografia do Abismo”, de Felipe Nunes e Thomas Traumann; “Infocracia”, de Byung-Chul Han; ”O Descontentamento da Democracia”, de Michael Sandel; e “Por que a Democracia Brasileira Não Morreu”, de Marcus André Melo e Carlos Pereira.
Aprofundando as razões dessa onda autocrática, chegamos à “Declaração de Berlim”, divulgada em maio de 2024 durante o “Fórum da Nova Economia” (ver: newforum.org). Assinada por pensadores e especialistas de diferentes campos ideológicos, como Thomas Piketty, Robert Johnson e Pascal Lamy, ela defende um novo modelo de governança mundial que vá além das propostas fiscais, conhecidas como o “Consenso de Washington” – austeridade fiscal, privatizações e a intervenção mínima do Estado na economia – como receituário para a crise econômica dos anos 80 e 90. O Fórum de Berlim teve como lema: “Reconquistar o Povo”, compreendendo que a cartilha fiscalista mais ortodoxa praticada nas últimas quatro décadas aumentou as desigualdades e, como já dito, gerou uma forte dose de desconfiança e de ressentimento popular em relação à democracia, sentimentos que foram exacerbados pelas mídias digitais.
A “Declaração de Berlim” não defende o Estado máximo nem ignora a relevância da sustentabilidade fiscal dos governos. Pondera, contudo, que ela não será exitosa se desacompanhada de políticas públicas voltadas para o combate às desigualdades, inclusão social, prosperidade compartilhada, sustentabilidade ambiental e fortalecimento da democracia. A ideia central é que o papel do Estado seja redimensionado, levando em conta as aspirações de uma cidadania que continua desejando bem-estar social, porém mais intolerante, incrédula e, ao mesmo, desinformada quanto aos dados de realidade e, de modo especial, quanto à razão de ser de uma das conquistas civilizatórias mais importantes: o Estado Democrático de Direito.
Os desafios do presente são tão complexos que o famoso mantra cravado há três décadas por James Carville — “É a economia, estúpido!” — já não é mais suficiente para explicar o sucesso ou fracasso de partidos ou líderes políticos. Hoje, temos uma equação com um grau bem mais elevado de dificuldade: É a economia, mais o ressentimento, mais a intolerância, mais a desinformação, mais os algoritmos enviesados…, estúpido!
É nesse contexto de complexidades e de corredores sociais e institucionais estreitos que enxergo um papel essencial para os Tribunais de Contas. O controle e a avaliação de políticas públicas, com foco no exame da eficiência e nos resultados das ações governamentais, aliados a uma política de comunicação eficaz com a sociedade, constituem verdadeiros antídotos contra o agravamento da crise da democracia e de suas instituições.
Foi esse o ponto principal (e final) da minha apresentação em Lisboa e que será o tema da próxima coluna juntamente com as seguintes dúvidas: uma “Andorinha” só faz democracia? E o que as Borboletas e os Galos têm a ver com esses desafios?
Valdecir Pascoal – Conselheiro-presidente do TCE-PE