Caso Master: o retrato de Dorian Gray da Previdência Social brasileira

Alexandre Sarquis

Diversos regimes próprios de previdência social com quase dois bilhões de reais expostos a um único conglomerado financeiro. O caso Banco Master ainda está em apuração, mas um fato silencioso passa despercebido: se o impensável vier, não terá sido apenas a falha de uma Instituição Financeira. Foi também uma sociedade que se recusa a reconhecer a própria face que envelhece.

É tentador reduzir o episódio a um enredo de má gestão pontual: um ou outro gestor mais ousado, uma consultoria de investimentos persuasiva demais, um produto financeiro de brilho enganoso. Mas um olhar menos distraído mostra que tudo não passa de fragmentos de um enredo bem mais intrincado.

Enquanto Tribunais de Contas soavam toda sorte de alertas – tais como fizeram TCE-SP, TCE-PR, TCE-AP e TCE-RJ – , eram em parte ignorados, sob argumentos de segurança jurídica, de inocorrência de erro grosseiro ou de inexistência jurídica de prejuízo. Em verdade, havia – e há – quem vislumbrasse na conta previdenciária mera abstração de longo prazo, com cancha indefinida para protelar, senão por apenas mais um mandato.

No Legislativo, alinham-se projetos que ampliam benefícios, criam novas aposentadorias especiais, ressuscitam vantagens extintas, aliviam contribuições de grupos específicos, ressuscitam vantagens extintas, aliviam contribuições de grupos específicos (PLP 185/2024, PEC 14/2021, PEC 18/2025, PLP 111/2024, PEC 10/2023, PL 196/2020, PL 2709/2022, PL 3387/2019, PL 1126/2021, PL 2607/2023, PEC 6/2024, PEC 76/2019, PL 2531/2021, PEC 37/2022, PL 3024/2020 e PL 317/2022). Em Municípios e Estados, então, são tantos mais projetos quanto é grande o Brasil. Todos eles dotados de relevante impacto atuarial, mas de custo orçamentário imediato quase irrelevante, tornando a decisão politicamente sedutora: hoje, apenas parágrafo na lei, mas, no longo prazo, novo depósito sobre a estrutura já envergada.

Sob o ponto de vista administrativo, há notícias de que ao menos algumas consignatárias lograram contornar o consentimento formal de aposentados e pensionistas, muitos deles no crepúsculo da vida e em franco declínio cognitivo, para acantonar débitos nas margens dos contracheques.

A gestão de investimentos é manifestação dessa mesma lógica, que se repete. O administrador é surpreendido com o papel que lhe colocam, o de Fausto cogitando a oferta de Mefisto: produtos complexos, estruturas opacas, concentração em poucos emissores, análise superficial de risco, tudo na busca desesperada por alguns pontos percentuais a mais – pontos estes que nenhum fundo de pensão de país que se preze ousaria perseguir.

Leis concessivas, esquemas atuariais e balanços previdenciários me lembram Oscar Wilde, escritor irlandês que contou a história de um jovem belo, mas vaidoso, que selou um pacto maldito. Enquanto ele permanecia sempre jovem, quem envelhecia e se degradava era o seu retrato escondido no sótão, que paulatinamente acumulava rugas e deformações, a cada torpeza, crueldade ou covardia praticadas.

Os balanços previdenciários são o retrato de Dorian Gray de nossa Previdência Social: na parede, a face jovem, fresca, impecável. Normas que prometem sonhos de justiça social, enquanto os demonstrativos contábeis exibem ativos registrados a valor de face, a despeito da inverossimilhança de sua realização. Rubricas que, ante o medo paralisante de denunciar as decisões de quem investiu, permanecem duras e frias como gatos de porcelana. Enquanto isso, escondido no sótão da demografia e da atuária, outro quadro envelhece, e a sociedade extravia a oportunidade de capitalizar enquanto ainda é jovem.

Mas a máxima segundo a qual o “ente federativo não quebra” é uma crença infundada no dogma civilizatório. O Estado não entra em falência no sentido clássico: não há edital, síndico nomeado ou leilão de ativos. Mas a ruína se traveste em outra experiência: chega na folha de pagamento inflada, que consome todo o ar do orçamento; na falta de caixa para a merenda, para o medicamento, para a segurança pública.

É uma outra falência, caótica, sem cartório e sem juiz, com crianças sem aula, filas em hospitais e paralisação do investimento público. O município não desaparece, antes, sobrevive nas sombras daquilo que poderia ter se tornado. Usando dados de 2010, o relatório “Políticas sociais: acompanhamento e análise, v. 1” do IPEA sugere que a necessidade de financiamento da Previdência Social era de 3,33% do PIB. Já o Relatório de Acompanhamento Fiscal da IFI de 11 de março de 2019, anotava um panorama degradado, com despesas com os regimes previdenciários alcançando 13,4% do PIB. E o ponto de inflexão causado pelo bônus populacional ainda está por vir.

Não há vento favorável ao marinheiro que não sabe a que porto quer chegar. Precisamos de clareza, para, enfim, decidir. No plano contábil-orçamentário, permitir o registro de toda sorte de promessa de pagamento ou de investimentos garantidores fosse, propicia apenas uma ilusão de solvência, ao preço de não capitalizar no período mais favorável e de esconder o verdadeiro ônus futuro dos planos de equacionamento propostos. Adia-se o reconhecimento da perda, alonga-se o calvário e esgota-se o tempo em que ainda seria possível recompor o fundo com menor sacrifício social.

Eis o estado da previdência: batem à porta os postulantes importunos, sugerindo novas despesas, novos pareceres, novas contas. Não se limitam a solicitar cargos ou programas, mas oferecem aplicações, técnicas atuariais, contábeis ou jurídicas. Resistir é difícil: a pressão política, o ruído de mercado, o medo de ficar para trás, deixado à sua sorte, o administrador acaba por aderir. E em muitos casos só se faz necessário ceder uma vez.

A infraestrutura de governança, sob a liderança dos Tribunais de Contas, precisa assumir cada vez mais a militância da função que lhe empresta o nome, funcionando na capacidade de espelho incômodo. Tribunais de Contas e Ministérios Públicos de Contas, quando exigem provisões integrais para créditos de recuperação duvidosa, quando investigam consultorias de investimento e atuariais, e as autoridades que as patrocinaram, não almejam apagar as canetas. Almejam desfraldar o retrato que o sótão esconde.

Talvez ainda haja tempo de reconciliar as duas imagens, mas precisaremos de menos milagre e mais prudência. Contratar prestadores de serviços sérios, independentes e técnicos. Aprovar leis que contemplem seus efeitos atuariais. Tratar balanços previdenciários como diagnóstico, não como peças publicitárias. Admitir que Municípios e Estados, embora não quebrem em juízo, definham em plena execução orçamentária. Considerar, de forma séria, independente e técnica, as suas opções de investimento.

Alexandre Sarquis é conselheiro substituto do TCE-SP e coordenador técnico do Comitê de Previdência Social da Atricon/IRB