Por trás do que lembro, ouvi de uma terra desertada,
vaziada, não vazia, mais que seca, calcinada.
De onde tudo fugia, onde só pedra é que ficava […]
(O Rio, João Cabral de Melo Neto)
Começo com um parênteses. Outro dia, um amigo compartilhou notícia sobre a atuação dos Tribunais de Contas (TCs) no controle de uma determinada política pública. Surpreso, perguntou: – Os TCs podem fiscalizar este tema?
Respondi que, de fato, nos últimos tempos, esses Tribunais têm expandido sua atuação, indo além do exame da conformidade dos atos de gestão, passando a apreciar também eficiência e resultados da aplicação de recursos públicos. Acrescentei que, eventualmente, podem surgir dúvidas sobre a relevância e abrangência da fiscalização, mas, em geral, se os fatos sob controle integram uma política pública e implicam a utilização de dinheiro público, o Tribunal não estará indo “além das sandálias”, qual o famoso sapateiro repreendido por Apeles; estará, sim, no legítimo exercício de um poder-dever. A rigor, é a Constituição Federal que define até onde esses órgãos podem ir, e em seu artigo 70 prevê o controle operacional, justo o que autoriza o exame da eficiência dos gastos.
O desafio de cumprir todo o repertório de atribuições tem exigido desses órgãos um grande esforço em capacitação multidisciplinar de seus membros e servidores. Estes precisam estar aptos a transcender a análise formal-financeira e valorar adequadamente a efetividade das políticas públicas. A especialização, a partir do exemplo do TCU, tem se tornado uma marca dessas instituições. Antigos departamentos de contas federais, estaduais e municipais vêm dando lugar a segmentos especializados em educação, saúde, segurança, meio ambiente, transporte, tecnologia e infraestrutura. A lógica dessa inflexão gerencial é graduar o controle e deixar patente o seu propósito de zelar pela regularidade e qualidade das políticas públicas postas a serviço do cidadão, sem, decerto, pretender substituir o gestor.
Fechado o parênteses, entro no tema específico deste artigo (relacionado a esse novo modo de se fazer controle externo): a DESERTIFICAÇÃO – concebida como o processo de degradação extrema da terra, da flora e biodiversidade, resultando na perda de sua capacidade produtiva. Esse grave problema, que já afeta 13% do semiárido brasileiro, equivalente à área da Inglaterra, é o foco de uma “Auditoria Operacional Coordenada” realizada por cinco TCs do Nordeste (TCE-PB, o pioneiro, TCE-PE, TCE-RN, TCE-CE e TCE-SE), em parceria com o TCU, e com apoio de entidades como a Atricon. O objetivo é avaliar a crescente degradação ambiental dessa região, levando em conta fatores climáticos, como a seca, e as ações humanas que prejudicam a terra, os recursos hídricos e a qualidade de vida da população, como queimadas, uso intensivo do solo, técnicas inadequadas e desmatamentos. Em foco também a efetividade das políticas federal, estaduais e municipais de combate à desertificação.
Os resultados preliminares foram divulgados (veja o sumário: bit.ly/461sfDK). Além da insuficiência de recursos nos orçamentos, chamou atenção a desmobilização, em 2019, da Comissão Nacional de Combate à Desertificação, prejudicando a articulação entre entidades federativas. Agora, cada Tribunal trabalhará diretamente com os gestores estaduais e municipais para aprofundamento e identificação dos desafios específicos, pactuando soluções e compromissos.
Ao ouvir, pela primeira vez, a ideia dos TCs priorizarem o tema da desertificação, vieram-me à mente livros que retratam a saga dos nordestinos contra a seca: “A Bagaceira” (José Américo), “Vidas Secas” (Graciliano Ramos), “O Quinze” (Rachel de Queiroz), “O Rio – Morte e Vida Severina” (João Cabral) e “Auto da Compadecida” (Ariano Suassuna). Todos esses clássicos precisam ser lidos e relidos por governantes e controladores para que possamos sentir a dimensão histórica, econômica e, sobretudo, humana do problema e a importância das políticas públicas intersetoriais para transformar essas realidades. Contudo, há um livro em especial que merece uma verdadeira consulta: “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, com especial atenção para o Capítulo V, da Parte I – A Terra.
Ali, ele descreve “Como se faz um Deserto”, enfatizando, com estilo e precisão científica, a ação prejudicial do homem para a desertificação, como a prática das queimadas. Em seguida, em “Como se extingue o Deserto”, o autor trata de soluções, de técnicas de armazenamento de água e de irrigação utilizadas pelos romanos, defendendo que o mesmo poderia ser feito no Nordeste, por meio da construção de represas, canais e cisternas.
Em 1500, na famosa “Carta”, Pero Vaz de Caminha elogiava a terra que, em se plantando, tudo daria. Séculos depois, Euclides também destacou a fertilidade daqueles sertões em períodos invernosos: “O Sertão vai virar Mar!” A Bíblia é repleta de passagens em que o bom Deus transformou desertos em oásis. Penso, contudo, que, por ora, não devemos desperdiçar esse crédito sagrado. Todos nós – governantes, órgãos de controle e sociedade – podemos fazer mais para atenuar – ou, quiçá, eliminar – esse martírio secular da terra e de seu povo.
Valdecir Pascoal – Conselheiro do TCE-PE