De volta ao começo

De volta ao começo

Valdecir Pascoal

      A pandemia deixa o futuro ainda mais nublado. Como um Benjamin Button, inverto os ponteiros do relógio e viajo pelo passado. Há dois caminhos no retrovisor da memória. O primeiro revela que parcela da humanidade decidiu evocar uma trágica marcha regresso; o outro é só saudades e esperanças. Sigo.

Vejo o presente repetir um passado que julgava sepultado. Algo aconteceu no mundo que tirou das sombras, aos montes, autoritários, negacionistas, fanáticos e preconceituosos. Aprendemos com Newton que, sobre “ombros de gigantes”, o progresso era o destino. Mas, não. Os atuais tempos líquidos diluem valores iluministas como liberdade, igualdade e fraternidade, o que, somado à sabotagem da democracia e do meio ambiente, noves dentro a cólera dos algoritmos, evidencia o colapso do nosso pacto civilizatório. Nada era tão sólido e avanços manifestos se desmancham no ar. O “réquiem” das ambulâncias pelas ruas, repletas de sem-máscaras, é uma triste metáfora de nosso retrocesso humanista. Nestes dias absurdos, diz Vittorino Andreoli, o Sapiens dá lugar ao Homo Stupidus, que, hipnotizado, é tangido pelo “flautista” rumo à caverna.

Mas há passados e passados. O desejo de tocar em frente e de manter acesa a chama, me leva ao caminho das recordações. A inspiração vem da leitura do épico “Em busca do tempo perdido”, de Marcel Proust. Ao saborear o biscoito Madeleines, molhado no chá, o autor viaja pela memória de sua infância na pacata Combray, provando que, se, por um lado, o tempo destrói o passado, por outro, a memória o redescobre, fazendo-o antídoto contra a passagem cinza das horas. Súbito, me imagino na doce terra em que nasci, a pequenina Luís Gomes, no sertão do RN. Sinto o frio da Serra na festa de Santana; ouço o sino da Matriz; brinco nas praças com os amigos; sigo os passos da banda de música; ouço Roberto Carlos na difusora comunitária; tomo banho de chuva na rua; provo o melhor doce de caju; em dias de febre: cream cracker com guaraná; vejo o futuro na escola onde eu estudei; da janela da velha casa com varanda, um lindo horizonte e a liberdade de uma estrada. Nada igual, porém, à lembrança do beijo de minha mãe e do colo seguro do meu pai. Reencontrar esse tempo perdido é o avesso do crepúsculo, é uma lufada de vida.

Dobro a porção de Madeleines. O ontem e o hoje se confundem. Estou no topo da Serra rodeado de paz e felicidade – família, amigos, livros, discos e de todas as  tantas diferentes gentes que já cruzaram meus caminhos do coração.

“O menino com o brilho do sol; uma viagem ao fundo do fim, de volta ao começo”… para poder prosseguir!

 

Valdecir Pascoal – Conselheiro do TCE