Democracia em crise: entre o passado e os desafios do presente

“No contexto da Guerra Fria, a democracia liberal ampliou sua dimensão social como estratégia de contenção ao avanço comunista.”

João Antonio

O mundo atravessa um período de transformações profundas. Nenhum líder político, por mais poderoso que seja, é capaz de conter a força da globalização econômica, a crescente influência das Big Techs — isto é, dos algoritmos que moldam comportamentos, costumes e padrões de consumo — nem a velocidade quase instantânea da circulação de informações. Esse cenário redefine não apenas a economia, mas também as formas de convivência social e política. A democracia, entendida como um regime que valoriza a pluralidade e a diversidade de vozes, encontra-se desafiada a renovar seus instrumentos de funcionamento para preservar sua vitalidade e relevância.

Fundamentos da democracia liberal

A democracia liberal consolidou-se ao longo do século XX como um modelo sustentado por pilares fundamentais: a escolha de representantes por meio do voto livre, universal e periódico; a existência de freios e contrapesos, garantidos pela separação de poderes e pelo fortalecimento de instituições de Estado autônomas; a proteção de direitos e liberdades individuais, como a liberdade de expressão, de associação e de iniciativa econômica; e a consolidação de um pacto constitucional, capaz de refletir tanto valores coletivos quanto interesses estratégicos de uma nação. Mais do que um simples procedimento eleitoral, esse modelo busca equilibrar a vontade da maioria com a proteção das minorias e a limitação do poder estatal, preservando a dignidade humana e assegurando a pluralidade social.

Guerra Fria e o fortalecimento do viés social

No contexto da Guerra Fria, a democracia liberal ampliou sua dimensão social como estratégia de contenção ao avanço comunista. Após a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, a disputa entre o bloco capitalista, liderado pelos Estados Unidos, e o bloco socialista, liderado pela União Soviética, passou a impor novos parâmetros à vida política global. Temendo a expansão do socialismo, os países liberais — especialmente na Europa Ocidental — adotaram a lógica de “entregar os anéis para não perder os dedos”, fortalecendo políticas de bem-estar social, ampliando direitos trabalhistas e promovendo maior inclusão social. Do ponto de vista histórico, pode-se afirmar que esse liberalismo com viés social — uma espécie de terceira via — foi decisivo para legitimar, durante a polarização ideológica do século XX, conquistas civilizatórias que marcaram profundamente as democracias contemporâneas.

O colapso soviético e o avanço do neoliberalismo

Entretanto, com a queda do Muro de Berlim e o colapso do modelo soviético em 1989, essa lógica perdeu vigor. Sem a ameaça comunista como contraponto, o capitalismo deixou de enfrentar um adversário sistêmico capaz de lhe impor limites, resultando no progressivo esvaziamento do Estado de bem-estar social. Nesse vácuo ideológico, fortaleceu-se um individualismo competitivo que não apenas fragilizou os valores de solidariedade coletiva, mas também promoveu o desmantelamento sistemático das políticas distributivas, privilegiando a lógica do mercado em detrimento da coesão social.

Ao mesmo tempo, ganhou fôlego uma agenda marcada pelo conservadorismo nos costumes e pelo ultraliberalismo econômico, que reabilitou práticas de intolerância cultural — como racismo, homofobia, misoginia e aporofobia — enquanto exaltava o empreendedorismo como solução universal, ainda que dissociado de condições reais de igualdade. Esse modelo paradoxal levou a sociedade a uma lógica de competição sem freios, corroendo a essência democrática, fundada na composição das diferenças e no respeito às liberdades individuais e coletivas. É um cenário que remete à “guerra de todos contra todos”, descrita por Thomas Hobbes, em que prevalece o “salve-se quem puder”, os laços de solidariedade se enfraquecem e o elitismo meritocrático se impõe em detrimento da verdadeira igualdade de oportunidades.

A política da ilusão no Brasil

No Brasil, esse processo assumiu contornos próprios. A direita conservadora tem utilizado a ilusão como arma política, vendendo à população uma realidade distorcida: a promessa de que todos podem prosperar pela via do empreendedorismo individual. Essa narrativa, sedutora por sua simplicidade, ignora as desigualdades estruturais que marcam a sociedade brasileira, banaliza o valor do emprego formal e, quando o fracasso acontece — como ocorre na maioria dos casos — transfere ao indivíduo toda a responsabilidade. Assim, a vítima das circunstâncias é transformada em culpada, numa lógica perversa que absolve o sistema e reforça a exclusão.

A revolução tecnológica e o futuro da democracia

Soma-se a esta realidade a revolução tecnológica, que transformou radicalmente a comunicação política. As redes sociais, mediadas por algoritmos, reduziram a centralidade dos meios tradicionais e passaram a definir quais vozes têm alcance e quais são silenciadas. Hoje, a visibilidade de uma mensagem está condicionada aos interesses econômicos das Big Techs, que determinam a relevância de cada postagem segundo sua lógica de mercado. Esse processo desloca o centro do debate democrático, submetendo-o a critérios mercadológicos e enfraquecendo o pluralismo que deveria sustentá-lo.

Conclusão

O balanço histórico demonstra que a democracia liberal soube se expandir e se reinventar em determinados momentos, mas hoje enfrenta uma crise estrutural. O esvaziamento de sua vertente social, o avanço de discursos autoritários nos costumes e a captura da comunicação política pelas grandes corporações digitais colocam em xeque a legitimidade de suas promessas de liberdade, igualdade e pluralidade. A democracia convive com instituições formais ainda vigentes, mas debilitadas diante da realidade de desigualdades crescentes, intolerância e da corrosão dos laços de solidariedade.

Diante desse quadro, a tarefa urgente para o Brasil e para o mundo não é apenas defender instituições herdadas, mas reconstruí-las e reinventá-las. Isso exige recuperar a centralidade da justiça social, regular o espaço digital para garantir pluralidade e transparência, fortalecer a educação cívica e estimular novas formas de participação democrática. Só assim será possível enfrentar os dilemas do século XXI e impedir que o individualismo competitivo e a mercantilização da vida pública se sobreponham aos esforços de construção de uma sociedade em que a riqueza produzida coletivamente seja compartilhada, fazendo da justa distribuição de renda um verdadeiro pilar de coesão social e de vitalidade democrática.

João Antonio é conselheiro do TCM-SP e vice-presidente da Atricon