Existe uma interessante contribuição da Ciência Econômica para o Direito. Trata-se da “teoria dos jogos”, que pretende explicar comportamentos aparentemente irracionais observados na sociedade, intuindo a psicologia humana. Uma demonstração da teoria é o “dilema dos prisioneiros”. Dois criminosos são detidos, separados, interrogados e recebem a mesma oferta: uma confissão com incriminação do companheiro será recompensada com o relaxamento da sua ação penal.
Imediatamente remói cada um dos prisioneiros, na intimidade de suas aflitas mentes criminosas, que se o parceiro ficar de boca fechada, a promotoria provavelmente terá um trabalho duro, pois, se não fosse necessária como prova, a confissão não apareceria na barganha. Por outro lado, se um deles delatar sem oposição do outro, o delator obterá o acordo e não será processado, apresentando a sua versão em juízo, o que aniquilará a defesa do parceiro.
Qual a solução oferecida pela Ciência Econômica? Nessa situação hipotética e idealizada, a despeito do melhor curso de ação para ambos ser o silêncio (que é conhecido como “ótimo de Pareto”), o que ocorre é que delatam um ao outro (que é conhecido como “equilíbrio de Nash”). Tenho certeza de que Delegados de Polícia acompanham a verossimilhança da teoria todos os dias.
Como a legislação encampou a teoria então? De muitas formas. Embora o expediente figure nas legislações de certos países há décadas, o emprego juridicamente moderno tem sido reconhecido como originário da operação “Mani Pulite”, célebre operação italiana que desbaratou a Máfia.
Estas espécies de acordo entraram no cenário jurídico penal brasileiro com a Lei de Crimes Hediondos, de julho de 1990, mas houve também importante aplicação da teoria fora do campo criminal, inclusive no campo administrativo. O Estatuto da Criança e do Adolescente, de julho de 1990, e o Código de Defesa do Consumidor, de setembro de 1990, ambos contemplaram a figura do Termo de Ajustamento de Conduta, que tem uma ideia similar de extração de confissões. Nele, aqueles que cometeram ato ilícito e tiveram evidências descobertas, podem evitar a apreciação de suas ações no judiciário mediante confissão e compromisso de alteração da conduta.
O sucesso jurídico dos acordos, embora evidente, pode levar a abusos enganosos. A Administração Pública, afinal de contas, deve ser honesta, imparcial, transparente e implacável executora da Lei. Predileções e estratagemas quando visitam o seio da Administração Pública podem favorecer um balcão de negociações que importuna o equilíbrio dos poderes do Estado:
1 – O titular do direito de ação pode ser tentado a ameaçar a instauração de procedimento como meio para dissuadir a execução de atos que ele pessoalmente entenda incorretos, mas que não sejam pacificamente tidos como ilícitos em juízo. Assim, a própria ação judiciária passa a ser o elemento de barganha e não a punição que com ela poderia ser decretada. A ação judicial é percebida como cara, desprestigiosa e temida pelas pessoas, independentemente de seu desfecho.
2 – A transação deve ter lugar entre aqueles que são titulares dos direitos ali acertados, pois transação pressupõe a capacidade de disposição daquilo que se negocia. Em situação hipotética, por exemplo, não caberia ao Executivo desistir de punição da alçada do Ministério Público. A Constituição Federal distribuiu de forma definitiva os direitos entre os atores que criou.
3 – Uma transação no âmbito administrativo nunca deve ser desenhada ou conduzida de forma a que dificulte ou inviabilize uma outra negociação já iniciada, principalmente aquelas do Ministério Público, que devem assumir primazia. O agente a quem incumbe precipuamente satisfazer as pretensões punitivas do Estado é o Ministério Público.
4 – Por fim, não atende ao interesse público aceitar acordos simultaneamente com todos os comparsas, de forma a que todos gozem da imunidade que foi planejada como um custo indesejado, mas indispensável para administração da justiça. O acordo não pode travestir a concessão de indulto.
O acordo de leniência introduzido pela Lei Anticorrupção (Lei 12.846/13), por exemplo. Em havendo provas suficientes para buscar as punições de que trata a Lei Anticorrupção, não há nenhum motivo para oferecer o acordo, basta aplicar as demais disposições da Lei. Por outro lado, em existindo conveniência e oportunidade para o negócio no âmbito administrativo, ele deve contar com o aval daquele que julga os atos de gestão que, no caso brasileiro, é o Tribunal de Contas.
Nos EUA, em que o escândalo de Watergate deu origem à “Foreign Corrupt Practices Act” de 1977, e no Reino Unido, em que a “Bribery Act” foi marco em 2010, o titular do Controle Externo é a Controladoria-Geral. Talvez por esse motivo, a Lei Anticorrupção, que se inspirou nessas Leis, tenha posicionado na Controladoria-Geral da União e não no Tribunal de Contas da União a coordenação dos acordos da área administrativa.
Naturalmente, no caso brasileiro, o TCU e o Congresso Nacional são, de qualquer forma, fiadores dos acordos firmados pelo Executivo. Qualquer outra interpretação da Lei é fulminada pela incompatibilidade com os arts. 74, § 1º e 71, IX da Constituição Federal de 1988. Não há como o Tribunal se eximir de apreciar um eventual acordo de leniência.
É interessante recuperar o momento da edição da Lei. Pressionado pelas manifestações de 2013, o Governo buscou responder rapidamente. No quesito “corrupção”, ao invés de buscar maior aplicação de Leis existentes ou de desembaraçar e aperfeiçoar a ação das instituições constitucionalmente incumbidas do combate, apoiando os projetos que elas possuem, optou por apressar a edição da nova Lei sobre o assunto. Assim, a Lei Anticorrupção passou a coexistir com o Controle Interno, os Tribunais de Contas, os Termos de Ajustamento de Conduta, a Lei de Improbidade Administrativa, os Crimes de Responsabilidade e os Crimes Comuns contra a administração.
A bem da verdade, estratégia parecida já funcionou no passado. Reunindo uma série de disposições que, de uma forma ou de outra, já existiam esparsamente na legislação, e indo aos limites da constitucionalidade, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/00) buscou inspiração na legislação de um país de tradição anglo-saxã, alcançando grande sucesso. A LRF precipitou a readequação da conduta dos administradores, que passaram a respeitar as possibilidades facultadas pela Lei Orçamentária. Embora a constitucionalidade de alguns de seus artigos ainda seja questionada, foi considerada constitucional em sua maior parte e é bem sucedida até hoje.
Talvez a diferença entre ambas tenha sido o trabalho de Consultoria Legislativa. No primeiro caso, foi primoroso, no segundo, não conseguiu moldar a ideia à versão brasileira de República. A LRF celebrou a tradição brasileira de Tribunais de Contas, mobilizando as Cortes para vigiar o seu cumprimento, enquanto a Lei Anticorrupção ignorou os Tribunais de Contas e não reconheceu a devida primazia do Ministério Público.
Recentemente o TCU editou a Instrução Normativa 74 de 2015 que regula o controle dos acordos de leniência. Longe de festejar uma Lei que, embora importante e necessária, em nada homenageou o Tribunal de Contas, trata-se de lidar com o que existe e tem validade jurídica, emprestando a intepretação mais conforme possível com as atribuições constitucionais do Tribunal de Contas. Trata-se de colaborar para que a Lei Anticorrupção de fato propicie redução da corrupção, não o inverso.
* Alexandre Sarquis é conselheiro fiscal da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil – ATRICON