Dimas Ramalho
No Brasil do século 21, um dado persiste como denúncia silenciosa de um fracasso coletivo: 29% da população entre 15 e 64 anos é considerada funcionalmente analfabeta. Esse percentual, revelado pelo Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), não apenas estagnou desde 2018 como retrocedeu em relação a 2009, quando o índice era de 27%. Entre os maiores de 50 anos, a situação é ainda mais dramática: metade desse grupo está nessa condição. É uma verdadeira tragédia nacional. Essa realidade escancara, mais do que uma lacuna educacional, uma espécie de exclusão social sistemática, que compromete a cidadania e o próprio desenvolvimento do país.
O estudo classifica o analfabetismo funcional em dois níveis: absoluto e rudimentar. Na edição mais recente, 7% da população entre 15 e 64 anos foi identificada como analfabeta absoluta — pessoas que não conseguem ler palavras simples ou sequer reconhecer um número de telefone. Já 22% apresentam alfabetismo rudimentar: sabem ler e escrever, mas enfrentam grandes dificuldades para compreender textos mais complexos ou realizar operações matemáticas com números maiores. Somados, esses dois grupos representam os 29% da população considerados funcionalmente analfabetos.
Trata-se de uma condição que tira a autonomia dessas pessoas e amplia a sua dependência em um mundo cada vez mais letrado, digital e acelerado. Ao mesmo tempo, limita drasticamente o potencial produtivo e crítico da sociedade.
Em paralelo, uma segunda pesquisa, conduzida pelo Todos Pela Educação e pelo Iede (Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional), mostra que a aprendizagem dos estudantes brasileiros não voltou aos níveis pré-pandemia e que as desigualdades educacionais se agravaram, sobretudo no que se refere à dimensão étnico-racial. Entre 2013 e 2023, cresceram significativamente as disparidades de desempenho, sobretudo em língua portuguesa e matemática, de estudantes pretos, pardos e indígenas, na comparação com alunos brancos e amarelos.
Essas duas realidades — o analfabetismo funcional e as desigualdades raciais na educação básica — não são fenômenos isolados. Elas compõem um mesmo enredo de exclusão social, onde a pobreza, o racismo e o abandono institucional se entrelaçam. O analfabetismo funcional de hoje é o efeito acumulado de um sistema que, desde a infância, falha em acolher, apoiar e ensinar milhões de estudantes. Por outro lado, quando se nega, ano após ano, uma educação de qualidade a certos grupos da sociedade, o que se planta é justamente esse futuro de limitações e exclusão.
Diante desse cenário, é urgente que o Brasil assuma um compromisso real com a superação dessas desigualdades. Um dos caminhos mais potentes – e frequentemente negligenciado – é o investimento consistente na Educação de Jovens e Adultos (EJA). A EJA é muito mais do que uma segunda chance: ela é um direito. Ela representa a possibilidade concreta de reconstrução de trajetórias interrompidas pela pobreza, pelo racismo, pela desigualdade de gênero e outras barreiras estruturais.
Quando um adulto retorna à escola, ele não apenas amplia suas possibilidades de inserção no mundo do trabalho e de participação cidadã, mas também transforma a relação de sua família com o saber. Estudos mostram que filhos de pais escolarizados tendem a permanecer mais tempo na escola e a apresentar melhores resultados educacionais. Ou seja, investir na EJA é investir também nas próximas gerações.
No entanto, a EJA, por si só, não pode ser a única frente de atuação. Para romper o ciclo da desigualdade educacional, é indispensável atuar desde o início do processo formativo. Isso significa garantir acesso, permanência e aprendizagem de qualidade para todas as crianças e adolescentes, especialmente para aqueles grupos que historicamente foram marginalizados pela escola. É necessário valorizar a diversidade étnico-racial como elemento central do currículo, formar professores para atuar com sensibilidade cultural e combater o racismo estrutural que se manifesta cotidianamente nas salas de aula.
O Brasil não pode aceitar como natural que quase um terço de sua população adulta esteja à margem das competências básicas de leitura e escrita. Tampouco pode se conformar com uma escola que perpetua a exclusão de seus estudantes mais vulneráveis. A educação precisa ser um instrumento de transformação social real, e isso só será possível quando deixarmos de enxergar esses dados apenas como estatísticas e passarmos a vê-los como o retrato de vidas que poderiam ter sido diferentes. A justiça social começa pela educação – e já passa da hora de agir.
Dimas Ramalho é conselheiro do TCE-SP e diretor de Relações Internacionais