Em auditoria, os fins não justificam os meios

Em auditoria, os fins não justificam os meios

*Inaldo da Paixão Santos Araújo

Em uma das minhas noites insones, assisti, mais uma vez, ao filme “300”, corroteirizado e dirigido por Zack Snyder, baseado na mítica Graphic Novel “Os 300 de Esparta”. História, cujos roteiro, desenho e arte-final são de Frank Miller.

O filme, praticamente fiel aos quadrinhos, é uma imperdível releitura de um fato histórico. Refere-se à Batalha das Termópilas (desfiladeiro espremido entre as montanhas e o mar no centro-norte da Grécia), ocorrida em 480 a.C., na qual, como escrito, 300 guerreiros espartanos liderados pelo Rei Leônidas lutaram até a morte para impedir o avanço do exército persa do Rei Xerxes.

Como Esparta celebrava a festa religiosa da Carneia, o Rei Leônidas, contrariando o conselho, partiu para combater os invasores persas apenas com os 300 homens de sua guarda pessoal.

Ao tentar obter o apoio e os votos do conselho para enviar o exército espartano em auxílio ao seu esposo, a Rainha Gorgo foi ludibriada pelo traidor Theron, que, em troca de “favores sexuais” materializados somente no filme, promete convencer os conselheiros.

Como Theron estava vendido aos persas, ele tenta desmoralizar a rainha perante o conselho, relatando a suposta sedução. A esposa de Leônidas, então, apunhala e mata lentamente o traidor, enquanto lhe repete as mesmas palavras ditas por Theron, quando ele praticava o abjeto e forçado ato sexual: “Isto não acabará rápido, você não sentirá prazer”.

É sempre agradável ver um bom filme mais uma vez, pois detalhes não percebidos são revelados, e novas releituras são feitas.

Assim, após essa cena, comecei a refletir sobre o ato da rainha e sobre se o pensar atribuído a Maquiavel “os fins justificam os meios”, é correto. Será que ela estava certa ao, na tentativa de salvar seu amado, sujeitar-se aos desejos lascivos de um traidor?

Ou seja, a grande questão é saber se para alcançar um objetivo, mesmo que seja nobre, o ser humano pode valer-se de qualquer atitude.

Em outras palavras, a expressão “os fins justificam os meios” nos dá a ideia de que, sendo o fim algo bom, pouco importam os meios para consegui-lo, desconsiderando a ética e a moral, como se não houvesse limites para o alcance de um objetivo considerado louvável.

Algumas pessoas acreditam piamente na célebre expressão e a utilizam como justificativa para seus malfeitos.

Como quase sempre procuro trazer as minhas questões para o universo auditorial, considero relevante discutir, neste espaço, uma questão que, certa vez, a mim foi imposta e que passou por minha mente ao término do filme. Ela era mais ou menos assim: pode um profissional da auditoria governamental dar ampla divulgação do resultado auditorial, quando ele o considere relevante, antes mesmo de uma decisão definitiva do órgão ao qual ele pertence?

Obviamente que a resposta foi não. Simples assim: não.

Ora, quem é o auditor senão aquele que exerce o controle, seja ele interno ou externo, observando se as atividades desenvolvidas em uma determinada empresa ou órgão estão de acordo com as disposições legais, se foram implementadas com eficácia e se estão adequadas para o alcance dos objetivos propostos?

Como podemos esperar de um profissional, a quem cabe o exercício do controle, falta de ética e o poder descabido, como se estivesse acima de tudo e de todos?

Penso que ninguém está acima do bem ou do mal e que o simples fato de auditar não justifica fazê-lo de forma ilegal, amoral ou desonesta. Se o fim é louvável, os meios para alcançá-lo também devem ser louváveis.

No entanto, como para o auditor não basta apenas dizer, mas provar, complementei a resposta.

Assim, no que se refere ao aspecto normativo, rememorei que o dispositivo 3504, das Normas Brasileiras de Auditoria Governamental (Atualmente em fase de substituição pelas Normas Brasileiras de Auditoria do Setor Público), estabelecia que “o profissional de auditoria governamental somente deverá divulgar a terceiros informações sobre o ente auditado ou sobre o trabalho por ele realizado, mediante autorização escrita do Tribunal de Contas responsável pelo trabalho, que contemple de forma clara e objetiva os limites das informações a serem divulgadas, sob pena de infringir o sigilo profissional”.

No que tange especificamente aos servidores incumbidos de realizar as auditorias e inspeções no Tribunal de Contas do Estado da Bahia, além das proibições constantes do Estatuto dos Servidores Públicos, é vedado, nos termos regimentais, divulgar informações sobre o trabalho a seu cargo.

Isso posto, mesmo para aqueles que maquiavelicamente entendem que os fins devem sempre prevalecer, independentemente dos meios adotados, dúvidas não podem restar de que os auditores devem, na sua conduta independente e ética, observar os normativos que regem a profissão abarcada, pois, como disse François La Rochefoucauld: “A fama dos grandes homens devia ser sempre julgada pelos meios que usaram para obtê-la”.

De mais a mais, em oposição à expressão questionada, fico com a doutrina cristã que, por estar pautada na ética, prega a frase: cum finis est licitus, etiam media sunt licita, vinda de um manual de ética escrito em 1645 pelo teólogo jesuíta Herman Busenbaum, cujo significado é: “se o fim é bom, também os são (e precisam ser) os meios”.

*Mestre em Contabilidade. Conselheiro-corregedor do Tribunal de Contas do Estado da Bahia. Professor. Escritor.

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