No livro Justiça, o professor Michael Sandel, da Universidade de Harvard, comenta, a propósito da tragédia decorrente do furacão Charley que atingiu a Flórida em 2004, dois tipos de comportamentos humanos: os oportunistas e gananciosos que aproveitaram a escassez de determinados bens para vende-los por preços abusivos, e os solidários e altruístas que tiveram a atitude inversa.
Diante da situação de gravíssima emergência sanitária provocada pela pandemia do vírus COVID-19, inúmeras dúvidas surgem quanto a uma possível futura responsabilização de gestores públicos por atos excepcionais praticados durante esse período, especialmente no que concerne às despesas públicas. Como estamos perante um episódio de gravidade inédita no país, há muita perplexidade e dúvidas.
Em situações extremas, aflora o que há de melhor no ser humano, como a compaixão e a solidariedade, mas também o pior, como a ganância, o egoísmo e a ambição de dinheiro e de poder. Já houve em nosso país gestores criminosos que se aproveitaram de tragédias para enriquecer ilicitamente, como no caso de desabamentos de encostas na Região Serrana do Rio de Janeiro.
Uma boa notícia para os gestores bem intencionados é que existe previsão legal que orienta a administração pública como agir em casos de emergência.
O artigo 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF estabelece que na ocorrência de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional, para a União, ou pelas Assembleias Legislativas, para Estados e Municípios, serão suspensas, enquanto perdurar a situação, a contagem dos prazos e as disposições estabelecidas nos artigos 23 e 31, ou seja, a recondução da despesa total com pessoal e da dívida consolidada aos limites legais. Ademais, em caso de crescimento real baixo ou negativo do Produto Interno Bruto (PIB) por período igual ou superior a quatro trimestres, tais prazos serão duplicados (artigo 66).
Nas mesmas condições de calamidade pública, o inciso II do artigo 65 prevê que serão dispensados o atingimento dos resultados fiscais previstos na lei de diretrizes orçamentárias e a limitação de empenho e movimentação financeira prevista no art. 9º para a hipótese de frustração de receita.
Nesta semana, o Congresso Nacional aprovou o Projeto de Decreto Legislativo 88/2020 que reconhece o estado de calamidade pública para os fins da LRF. Embora o texto mencione apenas a União, entendo que, como a situação de calamidade se estende a todo o país, estados e municípios também são alcançados pela excepcionalidade.
Quanto à Lei de Licitações, há expressa permissão para a dispensa de licitação nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 dias, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos (artigo 24, IV da Lei 8.666/1993). Observo que as despesas decorrentes da dispensa emergencial devem ser formalizadas nos termos do parágrafo único do artigo 26 da lei.
No que respeita ao aspecto orçamentário, os artigos 41, III e 44 da Lei 4.320/1964 preveem a possibilidade de abertura de créditos adicionais extraordinários destinados a despesas urgentes e imprevistas, em caso de guerra, comoção intestina ou calamidade pública. Essa situação é a única que excepciona a prévia aprovação legislativa e pode ser feita mediante decreto do Poder Executivo, do qual deve ser dado imediato conhecimento ao Legislativo. Na esfera federal, isso já foi feito pela Medida Provisória 924/2020.
Desta forma, o gestor público sinceramente dedicado a adotar todas as medidas ao seu alcance para enfrentar a pandemia do COVID-19 possui seguro respaldo legal e jurisprudencial para agir.
Luiz Henrique Lima é Conselheiro Substituto do TCE-MT.