Entre livros, interesses e decisões

Conselheiro do TCM-GO, Fabrício Motta.

Há uns bons anos, estando ainda exercendo atribuições do Ministério Público de Contas, recebi a ligação de um colega do Ministério Público estadual com atribuição para atuar na proteção do patrimônio público. Diante de notícias publicadas na imprensa local dando conta de que a prefeitura de um grande município do estado de Goiás vendera sua frota de carros usados e preparava uma licitação para locação de veículos, me perguntou sobre a possibilidade de atuarmos de forma conjunta, em duas frentes (na Justiça e no Tribunal de Contas), para aumentar a possibilidade de êxito. Perguntei qual a irregularidade, e o colega respondeu com outra pergunta, seguindo-se então um diálogo mais ou menos assim:

– Você aluga carros?

– Não.

– Então? Eu também não. Ninguém aluga carro, não é vantajoso, não faz sentido. Tem coisa errada nessa história.

Não fez nenhum cálculo, estudo, pesquisa — tinha sua convicção já formada.

Abrindo mão dos detalhes e da licitude da contratação, que não nos interessam no momento, lembrei hoje que, alguns anos depois, vendi meu carro e passei a alugar outro, porque na época fiz os cálculos e considerei vantajoso para minha realidade.

Essa pequena história serve apenas para introduzir uma outra pergunta que lanço no ar e que pode ser direcionada tanto para gestores públicos como para controladores (agentes públicos que exercem funções de controle): o fato de preferir comprar carro, locar carro, andar de carona ou a pé me permite submeter processos de escolha — que implicarão em uso de recursos que pertencem à sociedade — à minha vontade individual? Sendo mais específico: experiências e preferências pessoais podem conduzir decisões públicas?

Uma outra história ainda sendo escrita pode ser utilizada como exemplo. Como amplamente divulgado na imprensa, o Governo do Estado de São Paulo dispensou aproximadamente 10 milhões de livros didáticos comprados pelo Ministério da Educação, por intermédio do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), que seriam utilizados no ensino fundamental. A ideia inicial, ao que consta, era utilizar aparelhos de televisão para passar o conteúdo em sala (utilizando slides). Consta ainda que, após a repercussão negativa da ideia, o governo teria decidido utilizar material impresso em forma de apostilas [1]. Finalmente, foi ainda apontada a existência de suposto conflito de interesses envolvendo o atual secretário estadual de Educação por ser acionista de empresa que possui contrato firmado com a secretaria para fornecimento de notebooks [2].

A intenção deste artigo não é apurar nenhum desses fatos, mas apenas colher exemplos para suscitar questionamentos gerais ligados à condução dos interesses públicos.

Inicialmente, tratemos dos livros didáticos e da utilização preferencial de TV e meios tecnológicos. Não possuo formação ou conhecimento (pedagógico ou profissional) para avaliar a decisão com relação a seus reflexos no aprendizado dos estudantes. Minha experiência pessoal, como leitor formado em um tempo no qual não existiam muitos dos meios tecnológicos, se inclina bastante em favor do livro impresso — tenho verdadeira adoração por folhear, sentir a textura das páginas, o cheiro do papel, rabiscar e, claro, ler livros. Entretanto, me adaptei bem aos leitores eletrônicos e utilizo muito o Kindle. Hoje, prefiro o livro impresso em papel para as leituras técnicas e admito o eletrônico, pela praticidade, para literatura em geral. Mas minha preferência, fruto da minha experiência pessoal, não importa.

O gestor público deve decidir motivadamente, expondo as razões de fato e os fundamentos jurídicos que o amparam. Nos termos da Lei de Introdução às Normas do Direito, as decisões devem considerar os obstáculos e as dificuldades reais, observar o que prescrevem as políticas públicas em curso e demonstrar a necessidade e a adequação das medidas, inclusive em face das possíveis alternativas (artigos 20 e 22). As escolhas públicas não são indiferentes, notadamente aquelas relacionadas à educação, quando existem normas que estabelecem metas, prioridades e indicadores (merecendo destaque o Plano Nacional da Educação). Mesmo do campo das decisões com maior teor de discricionariedade — relacionadas à escolha de prioridades, por exemplo — existe balizamento jurídico com graus variados de intensidade. Não se admite capricho, improviso, voluntarismo – é preciso que as decisões estejam baseadas em evidências que sustentem sua adequação.

Com relação aos exemplos invocados, poderíamos perguntar: qual a razão de dispensar livros que, além de um processo rígido de seleção pedagógica, são distribuídos sem ônus pelo governo federal? O que se espera com essa decisão, qual meta se pretende atingir, e será aferida com qual indicador? Mesmo sob o ponto de vista econômico-financeiro, qual o impacto dessa decisão para o erário?

O estudo que teria amparado a polêmica decisão não foi disponibilizado – mais uma vez, de acordo com o noticiário [3]. Por outro lado, há ampla disponibilidade de evidências favoráveis à utilização do livro didático impresso (refiro, por todos, a estudo disponibilizado pela Rede Escola Pública e Universidade com informações, dados e argumentos que evidenciam o equívoco da decisão e o potencial prejuízo educacional) [4]. Não há qualquer restrição à utilização da tecnologia — ao contrário, há um dever de coerência pedagógica [5] para com o planejamento e os objetivos traçados, não havendo resposta simples para problema complexo [6]. Não houve, ao que se sabe, racionalidade decisória que tenha considerado a existência dessas evidências.

Com relação à existência de contratos entre a Secretaria Estadual de Educação e empresa que tem o Secretário como um dos sócios, é preciso avaliar com cautela. As notícias deram conta que a empresa fora proibida pela CGU de assinar novos contratos com o poder público em razão de descumprimento contratual envolvendo a compra de notebooks pela UFPR [7]. Entretanto, de acordo com a notícia, “Em caso semelhante ocorrido em São Paulo, a decisão foi outra. Feder decidiu poupar a própria empresa de sanção por atraso” [8]. Deixemos para os órgãos legitimados a verificação da extensão da sanção aplicada pela CGU e seus efeitos, devendo ser ressalvada a importância de que os efeitos sejam aplicados, como regra, para os contratos futuros. Esqueçamos também análise mais específica da eventual incidência das vedações legais, ressaltando que a nova lei de licitações estatui que § “Não poderá participar, direta ou indiretamente, da licitação ou da execução do contrato agente público de órgão ou entidade licitante ou contratante, devendo ser observadas as situações que possam configurar conflito de interesses no exercício ou após o exercício do cargo ou emprego, nos termos da legislação que disciplina a matéria” (artigo 9º, §1º Lei 14.133/21).

Atuar em processo administrativo sancionador envolvendo empresa na qual se tem qualquer tipo de participação é questionável; atuar como autoridade decisória é inadmissível diante do regime jurídico administrativo. Independentemente de qualquer vedação legal específica — constante de lei estadual, por exemplo — a situação em tese é um exemplo clássico do que se chama de conflito de interesse. Importante destacar que a regulação dos conflitos de interesses possui objetivo essencialmente preventivo, visando evitar a consumação de danos — em sentido amplo — ao patrimônio público. Busca-se proteger não somente o patrimônio público como também o próprio agente que, legitimamente, tenha interesses privados a defender e que não os queira sequer próximos da suspeita de promiscuidade com os interesses públicos. Busca-se proteger, inclusive, o processo racional-cognitivo decisório que, sujeito às vicissitudes humanas, possa inconscientemente se enviesar para determinados lados. Trata-se da conhecida referência à figura da “mulher de César”. A esse propósito:

A referência bíblica é irresistível para introduzir a análise do conflito de interesses: ‘Nenhum servo pode servir dois senhores; porque, ou há de odiar um e amar o outro, ou se há de chegar a um e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamom’. O exercício da função pública há de ser pautado pelas normas — regras e, especialmente, princípios — publicísticas, que podem conter inclusive prerrogativas que desigualam a relação jurídica com o cidadão. Ainda que se admita a existência de interesses privados dos agentes públicos, mesmo egoísticos, que se lícitos podem ser buscados por vias comuns, no exercício da função pública não se admite a intersecção desses interesses próprios com o interesse público. A questão essencial é justamente identificar os interesses privados do agente público e como podem eventualmente colocar em risco a consecução do interesse público” [9].

Como dito, este artigo não tece juízos sobre a situação concreta em si, pois o conhecimento a respeito dos fatos se limita ao noticiado pela imprensa. Utilizando o noticiário como exemplo, é possível repetir a pergunta: experiências e preferências pessoais podem conduzir decisões públicas? e arriscar a dizer que mesmo as crianças que estão sob a perspectiva de ficarem sem livros didáticos sabem a resposta.


[1] Um resumo cronológico da situação pode ser colhido no jornal O Estado de São Paulo: https://www.estadao.com.br/educacao/tarcisio-e-material-didatico-impressos-em-sp-entenda-idas-e-vindas-do-governo/

[2] https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/secretario-de-educacao-de-sp-e-investigado-por-conflito-de-interesses-em-contrato-de-notebooks/

[3] https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/08/14/uma-semana-apos-usar-dado-de-pesquisa-para-justificar-saida-do-pnld-secretaria-da-educacao-de-sp-nao-apresenta-levantamento-completo.ghtml

[4] https://www.repu.com.br/_files/ugd/9cce30_070adbeeae6b4e8dbe1b1bef465d7fc5.pdf

[5] A expressão foi utilizada por Olavo Nogueira em entrevista veiculada na Band News: https://bandnewstv.uol.com.br/conteudo/especialista-diz-que-juncao-de-materiais-digitais-com-fisicos-podem-trazer-bons-resultados-nas-escolas

[6] Alexandre Schneider tratou, por exemplo, da utilização do livro impresso em conjunto com apostilas no Município de São Paulo: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2023/08/cidade-de-sp-ja-adota-apostila-nas-escolas-mas-sem-abandonar-livro-didatico.shtml

[7] Em pesquisa realizada tanto no Cadastro de Empresas Inidôneas e Suspensas quanto no Cadastro Nacional de Empresas Punidas, ambos no site da CGU, não consegui localizar a referência à sanção referida.

[8] Empresa de secretário de Educação de SP é punida pela União enquanto ganha mais tempo no Estado – Estadão (estadao.com.br)

[9] MOTTA, Fabrício; BELÉM, Bruno. Persecução do interesse público em um cenário de múltiplos interesses. Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 277, n. 2, p. 149-175, maio/ago. 2018

Fabrício Motta – conselheiro do TCM-GO