*Dimas Ramalho
Conselheiro Vice-Presidente do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo
Atendendo à demanda pelo aperfeiçoamento do sistema de controle externo das contas públicas, o Congresso Nacional analisa atualmente propostas que buscam garantir mais efetividade na fiscalização dos recursos do Estado em sentido amplo. Dois dos textos em tramitação pretendem dar uniformidade à aplicação das leis a partir da vinculação das decisões de todos os Tribunais de Contas do país aos entendimentos do Tribunal de Contas da União (TCU). A ideia, que tem como principal entusiasta o Ministro da Economia, Paulo Guedes, peca por vícios técnicos e afrontas à Constituição.
Uma das propostas consiste na PEC do Pacto Federativo (PEC 188/2019), ainda sem previsão de votação nas duas Casas Legislativas. A pretendida alteração inclui um inciso XII ao artigo 71, que daria ao TCU a missão de consolidar a interpretação de leis complementares por meio de “orientações normativas” com efeito vinculante em relação aos Tribunais de Contas dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Caso uma decisão destes órgãos regionais venha a divergir das “orientações normativas”, caberia reclamação ao TCU, que teria poder de anulá-la, fixando prazo para que outra fosse proferida, conforme disposto no §5º trazido pela PEC. Ainda de acordo com esta proposta, em caso de inércia do tribunal de origem, o TCU avocaria a decisão, forçando a reforma do decidido, nos termos do sugerido §6º.
A outra mudança pretendida, mais adiantada e encaminhada à sanção presidencial, está dentro do Projeto de Lei 4.253/2020, que introduz uma nova Lei Geral de Licitações e Contratações Públicas (LGL). O artigo 172 do texto determina que os órgãos de controle – o que inclui todos os Tribunais de Contas – “deverão orientar-se pelos enunciados das súmulas” do TCU relativos à aplicação da futura LGL. Para não seguir tal orientação, a decisão deverá “apresentar motivos relevantes devidamente justificados”.
Em ambos os casos, tanto as “orientações normativas” quanto as súmulas do TCU teriam, em relação aos demais Tribunais de Contas do Brasil, força similar ao que as Súmulas Vinculantes editadas pelo Supremo Tribunal Federal têm em relação à atividade jurisdicional de tribunais e de juízes do Poder Judiciário. Tal analogia evidencia que a proposta do Governo tem um virtuoso e legítimo objetivo, mas o caminho escolhido peca por desconhecimento do sistema de controle externo brasileiro.
O país possui 33 Tribunais de Contas. Ao TCU, cabe a fiscalização dos recursos públicos federais. Em 23 Estados, um mesmo Tribunal de Contas analisa a aplicação das verbas estaduais e municipais. Na Bahia, em Goiás e no Pará, existem dois Tribunais de Contas, um para as finanças do Estado e outro para fiscalizar os recursos de todos os municípios da unidade federativa. Há também o Tribunal de Contas do Distrito Federal e, por fim, os Tribunais de Contas do Município de São Paulo e do Município do Rio de Janeiro, que cuidam exclusivamente dos recursos das Capitais de seus Estados.
Todos esses tribunais têm competências bem definidas e não mantêm qualquer relação hierárquica, já que se limitam às esferas dos respectivos entes federativos jurisdicionados. Diversamente da estrutura do sistema jurisdicional, que tem no topo o Supremo Tribunal Federal e os Tribunais Superiores, com jurisdição em todo o território nacional (art. 92, §2º, da CF), os Tribunais de Contas são organizados dentro de suas esferas de competência federativa.
As pretensas alterações normativas, portanto, são inconstitucionais e interventoras, por transformar o TCU em regulador nacional dos Tribunais de Contas, dando ao órgão o poder de avançar sobre competências de órgãos estaduais, municipais e distrital, sendo que a própria Constituição Federal garante a estes o mesmo plexo de competência do seu congênere da União, nos termos do art. 75.
O que embasa a regra constitucional atual é o Pacto Federativo, que concede autonomia aos entes federados e aos respectivos órgãos e entidades, com limitações à imposição da União e seus órgãos sobre matérias de competência subnacional, como é o caso da repartição de atribuições entre TCU e os demais Tribunais de Contas.
Com as devidas adequações, seria o mesmo que submeter os Tribunais de Justiça dos Estados aos Tribunais Regionais Federais. Entre si, eles não possuem qualquer vínculo formal, sendo as suas competências determinadas de acordo com a matéria ou a pessoa interessada, mas sem qualquer tipo de subordinação ou hierarquia entre eles.
É justo que os Tribunais de Contas busquem dar cada vez mais efetividade ao controle dos gastos públicos. Avançar na uniformização do entendimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, por exemplo, é um dos caminhos para tanto.
Além disso, o necessário aprimoramento não minimiza experiências bem-sucedidas do controle externo, seja na análise ordinária de atos administrativos ou em auditorias operacionais, muitas vezes em atuações conjuntas das diferentes instituições do ordenamento jurídico, cada qual exercendo seu papel e respeitando o das demais.
Uma alternativa juridicamente coerente para o problema posto parece ser a PEC 22/2017, que tramita hoje na Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Entre outras coisas, a proposta criaria um Conselho Nacional dos Tribunais de Contas, cuja arquitetura prevê uma Câmara de Uniformização de Jurisprudência, responsável por reconhecer controvérsias na aplicação de normas constitucionais ou nacionais, como a LRF ou a Lei de Licitações, podendo aprovar enunciados de caráter vinculante.
O TCU cumpre seu papel com excelência na fiscalização do erário federal e é saudável que mantenha diálogo com os demais tribunais, para compartilhamento de boas práticas e aumento da sinergia no controle externo. Cada instituição, no entanto, tem suas competências estabelecidas pela Constituição, nosso Norte jurídico. Entendo que o propósito que parece mover o Governo Federal e o Congresso pode ser alcançado sem inconstitucionalidades e sem tentar imputar aos Tribunais de Contas a responsabilidade pela atual crise nacional, como faz reiteradamente o Ministro Paulo Guedes, cuja interpretação do cenário brasileiro é claramente dissociada da realidade fática.