A campanha eleitoral estava a todo vapor em 2020 quando a Câmara Municipal de Santa Tereza do Tocantins (a 74 km de Palmas) se reuniu em 31 de agosto para apreciar as contas de Trajano Pereira Neto, prefeito entre 2013 e 2016.
As contas de dois anos foram rejeitadas, seguindo o parecer do Tribunal de Contas do Estado. Mas as urnas consagraram aliados do ex-prefeito em outubro daquele ano e, em maio de 2021, Trajano teve as contas reavaliadas e aprovadas por uma nova formação da Câmara Municipal.
O episódio revela o casuísmo que tem marcado o julgamento de contas de prefeitos pelas Câmaras e um cenário de descompasso entre as decisões dos vereadores e dos Tribunais de Contas.
Com a palavra final na análise das contas dos prefeitos e nas suas consequências para fins de elegibilidade dos gestores, Câmaras Municipais não raro ignoram pare- ceres dos Tribunais de Contas e manobram politicamente para salvar aliados e punir adversários.
Decisões divergentes aconteceram em cidades como Rio de Janeiro e Campinas (SP), onde parecer pela rejeição foi ignorado pelas Câmaras. Por outro lado, em municípios como Palmas (TO) e Taubaté (SP), tribunais indicaram a aprovação, e as contas foram rejeitadas pelos vereadores.
As decisões têm impactos no cumprimento da Lei da Ficha Limpa. Aprovada em 2010, a lei determina que políticos cassados ou condenados por irregularidades em decisões colegiadas fiquem impedidos de disputar cargos públicos por no mínimo oito anos, mesmo sem uma sentença definitiva.
A legislação foi criada a partir de um projeto de iniciativa popular e aprovada sem oposição no Congresso. Ela incluiu um dispositivo estabelecendo que, para inelegibilidade, o pronunciamento do Tribunal de Contas deveria ser a base observada pela Justiça Eleitoral pela natureza técnica das suas posições.
A Constituição define que as contas políticas são julgadas pelo Congresso, e as contas técnicas, pelo Tribunal de Contas da União. Por simetria, os legisladores entenderam que a regra valeria também para estados e municípios.
Os Tribunais de Contas diferenciavam entre contas anuais, referentes à aplicação do orçamento, e atos de gestão, e entendiam que poderiam julgar os prefeitos, com consequências na elegibilidade, nos casos em que eles fossem ordenadores de despesas.
Em 2016, contudo, o STF (Supremo Tribunal Federal) entendeu que o parecer do Tribunal de Contas tem natureza meramente opinativa e que cabe às Câmaras Municipais o julgamento das contas anuais dos prefeitos. Três anos depois, a corte reiterou a tese em nova decisão.
“A Lei da Ficha Limpa, em- bora não tenha sido declarada inconstitucional, não está sendo aplicada como estabelece sua redação original. A decisão do STF tem provocado uma aplicação diversa da intenção expressa da lei, enfraquecendo seu impacto na fiscalização e no impedimento de candidatos inelegíveis”, avalia o advogado Márlon Reis, um dos idealizadores da lei.
Na avaliação de Edilson Silva, presidente da Atricon (Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil), o novo entendimento ampliou componente político do julgamento das contas, deixando prefeitos e ex-prefeitos à mercê da conjuntura do momento do julgamento.
Para tomar uma decisão que vá na contramão do parecer no Tribunal de Contas, as Câmaras Municipais precisam do apoio de dois terços dos vereadores —um número que não é difícil de atingir dada a relação de proximidade entre prefeitos e vereadores na maioria das cidades.
“Com isso, pode acontecer de um prefeito que foi um desastre na administração ter as suas contas aprovadas”, avalia.
Nos últimos anos, ganharam tração nas Câmaras decisões que vão na direção oposta à dos Tribunais de Contas. Foi o que aconteceu no Rio de Janeiro no ano passado, quando foram julgadas as contas de 2019 e 2020 do ex-prefeito Marcelo Crivella (Republicanos).
Em manobra política, a base do prefeito Eduardo Paes (PSD) na Câmara aprovou as contas de Crivella, rival político do atual mandatário, de olho nas eleições deste ano. A movimentação foi feita para evitar atrito com o Republicanos, potencial aliado de Paes.
Na época, a defesa do ex-prefeito negou as irregularidades apontadas pelo Tribunal de Contas e disse que Paes agiu em favor de Crivella para evitar que “os inovadores critérios na valoração das ações de governo” fossem usados contra a atual gestão.
Em Barra de São Francisco (ES), os vereadores foram além e aprovaram as contas de 2010, 2012, 2014, 2015 e 2016 dos prefeitos Waldeles Cavalcanti e Luciano Pereira, mesmo com parecer favorável à rejeição em todos os cinco anos.
Em Palmas (TO), o cenário foi o oposto. Em 2020, a Câmara rejeitou as contas de 2013 e 2014 do ex-prefeito Carlos Amastha (PSB) a despeito do parecer do Tribunal de Contas pela aprovação. A votação foi secreta e não foram informados os motivos da rejeição.
Na época, Amastha afirmou que foi alvo de um julgamen- to meramente político e teve as contas rejeitadas em reta- liação por ter se posicionado contra interesses corporati- vos dos vereadores.
A rejeição, contudo, não teve impacto na elegibilidade, pois o parecer do tribunal não apontou ações que causassem prejuízo ao erário ou enriquecimento ilícito. Mas houve desgaste político: Amastha disputou o Senado em 2022 e foi derrotado.
A situação se repetiu em cidades como Estreito (MA) e Taubaté (SP), onde prefeitos também tiveram contas rejeitadas mesmo com o parecer dos Tribunais de Contas recomendando o contrário.
Na cidade paulista, foram rejeitadas em 2022 as contas do ex-prefeito Ortiz Junior (Republicanos) de 2019. Ele deve concorrer à prefeitura neste ano e enfrentar o grupo do prefeito José Suad (PP).
A cidade de Santa Tereza do Tocantins registrou um dos casos mais esdrúxulos. As mesmas contas do ex-prefeito de Trajano Pereira Neto foram rejeitadas em agosto de 2020 e aprovadas nove meses depois. A Câmara alegou que o ex-prefeito não teve direito a ampla defesa.
O argumento não convenceu o Ministério Público do Estado do Tocantins, que moveu uma ação civil pública que busca anular a reapreciação das contas pela Câmara.
Também há casos de Câmaras que simplesmente não apreciam as contas dos prefeitos e ex-prefeitos. Levantamento feito pelo Tribunal de Contas do Espírito Santo divulgado em 2023 revelou que 14 cidades do estado não julgaram as contas de nenhum prefeito desde 2009.
Nestes casos, os políticos seguem elegíveis mesmo em caso de rejeição pelos tribunais, já que a Justiça Eleitoral entende que não houve uma palavra final da Câmara.