Não vejo a hora de poder olhar o futuro com normalidade. Na vida é assim: a negação de algo quase sempre é a afirmação de uma expectativa. E quando olhamos o nosso dia a dia de modo criterioso, notamos que os detalhes não podem ser desprezados. Pelo contrário, numa pesquisa séria e rigorosamente projetada, é a soma de detalhes que torna as conclusões mais precisas.
No mundo atual as anormalidades têm ditado a dinâmica do convívio social. E quando se fala de anormalidades, o que salta aos olhos é a desgraça pandêmica causada pelo coronavírus. De fato, as consequências do vírus são um desafio que mobiliza energias, dinheiro e esforços concentrados de estruturas estatais, governos e sociedade. Não poderia ser diferente.
A vida é sem dúvida, o principal bem do planeta Terra. Preservá-la na sua inteireza é o desafio dos sapiens. Todavia, em seus incontroláveis desejos e no afã de impor o seu domínio, estes não conseguem, pela auto-organização, administrar suas ambições.
Descomedidos, fazem da competitividade entre si um falso impulso desenvolvimentista e, com ele, ampliam a fumaça destrutiva da vida nesse nosso planeta azul. Não se trata aqui de fazer o tempo parar. Não! Trata-se de estimular o equilíbrio das relações entre os humanos e destes com a natureza. Trata-se de tomar as medidas necessárias para impedir que o imediatismo ambicioso jogue contra a existência da vida.
Trata-se, portanto, de fazer com que as atitudes do presente dialoguem com as necessidades das futuras gerações.
Nada de ingenuidade. Pelo contrário, reconheço na capacidade humana de transformar a natureza – e até na sua ambição – a locomotiva impulsionadora das revoluções científicas, todas elas: revolução agrícola, surgimento do pensamento filosófico, da revolução industrial e da evolução tecnológica, até chegar no mundo globalizado de hoje, um mundo sem fronteiras econômicas e com informação global em tempo real.
Também reconheço no conhecimento acumulado pela humanidade o fundamento dos avanços civilizatórios. Mas isso não elimina um gritante paradoxo: a transformação da natureza para gerar desenvolvimento e riquezas não resolveu a exclusão social e, muito menos, as desmedidas ações do homem, resultando na progressiva degradação do meio ambiente. Esse é o principal motivo da ameaça à vida na Terra.
Na verdade, quero chamar a atenção neste texto para a díade solidariedade e individualismo competitivo. Essa é uma questão fundamental para os que desejam e projetam a construção de uma sociedade mais humana e um mundo saudável. Em se tratando de qualidade de vida, é impossível dissociar a vida em sociedade, desenvolvimento e preservação do planeta, o que implica em debater tipos de comportamento humano.
O individualismo competitivo, por exemplo, tem sido estimulado com o objetivo de impulsionar o desenvolvimento econômico. É por seu intermédio que a ideia do desenvolvimento pela concorrência se concretiza. Esta visão de mundo possui algumas marcantes características:
- Está associada diretamente à ideia de acumulação de bens materiais;
- Possui como fim o estímulo ao consumo sem critério na qualidade do uso;
- O uso do bem consumido é associado ao status – títulos, marcas famosas, lugares badalados, mansões etc;
- O mérito se confunde com “esperteza”. Esperteza no sentido de ardil, malandragem – fazer tudo que estiver ao alcance para se obter algo – até ludibriar se preciso for.
- Acumular o máximo no menor tempo possível.
O mérito se confunde com “esperteza”. Esperteza no sentido de ardil, malandragem – fazer tudo o que estiver ao alcance para se obter algo – até ludibriar se preciso for. Acumular o máximo no menor tempo possível.
Como se vê, se por um lado a ambição de fato é uma força motriz na construção de riquezas, e sem dúvida alguma acaba por estimular a criatividade e até o desenvolvimento – pela sua própria natureza -, ela acaba por obstruir uma maior organização horizontal da sociedade.
Esse jeito pragmático de ver o mundo faz da igualdade do ponto de partida a justificativa da desigualdades materiais. Mas vai além, tudo sem nenhuma distinção: a vida em seu sentido amplo, a relação com a natureza, normas comportamentais, as relações jurídicas e econômicas, a política, as organizações de Estado. Tudo fica submetido a esta lógica, ou seja, à lógica do individualismo competitivo.
E quando alguma voz se ergue contra tal lógica, logo vêm os seus defensores clamarem por “liberdade”. De que liberdade falam eles? Liberdade para acumular mais? Para fazer do dinheiro acumulado instrumento seletivo do prazer? De usar a transformação da natureza como instrumento particular de acumulação de bens?
Esse modelo ultraliberal de ver o futuro do nosso planeta, sem dúvidas, é um fator de desarranjo geral das relações intersubjetivas e aprofunda o pragmatismo oportunista da humanidade na sua relação com a natureza.
Prefiro estimular a solidariedade como base fundamental de organização dos humanos, com todos os seus significados:
- Compromisso pelo qual as pessoas e a coletividade pactuam regras comportamentais e se obrigam umas com as outras e delas para com o todo social;
- Sentimento de empatia, fraternidade – um estender a mão para os que sofrem;
- Juntar o eu e o nós numa perspectiva do bem-estar coletivo;
- Combater qualquer tipo de discriminação – religioso, orientação sexual, etnias e classes sociais;
- Juntar os interesses da atual geração com os das futuras, articulando o necessário desenvolvimento econômico com todos os elementos necessários para a preservação do planeta terra;
- Estimular a cooperação humana, de modo a fazer com que a igualdade do ponto de partida não seja uma mera justificativa das desigualdades materiais;
- Valorizar a igualdade do ponto de chegada como meio eficaz de diminuir as desigualdades materiais;
- Dividir responsabilidades, sejam elas individuais ou coletivas;
- Buscar no respeito às diferenças – aquelas inerentes aos humanos – mecanismos justos de composição plural para alcançar a desejada harmonia social.
Como se vê, são duas maneiras completamente diferenciadas de encarar a organização da sociedade. No individualismo competitivo – modo neoliberal de estimular o desenvolvimento econômico – a solidariedade é confundida com caridade. A filantropia é um jeito fácil de amenizar o peso na consciência dos individualistas frente às desigualdades sociais e o seu jeito pragmático de explorar as riquezas naturais.
Já no modo solidário de conduzir as relações humanas – práticas que se identificam mais com o socialismo -, o desenvolvimento do ser humano na sua inteireza é o centro de sua prioridade.
Como a história não segue em linha reta e as narrativas construídas a partir dos fatos são importantes elementos na construção de hegemonias, a disputa real segue o seu curso: todo tempo é tempo de convencimento e nesse processo construtivo dialético a humanidade segue na busca do melhor caminho para diminuir suas tensões.
De uma coisa eu tenho certeza: a paz social só se alcança com a diminuição das desigualdades materiais. Solidariedade e harmonia social caminham juntas. Nada mais é expressivo desse jeito de pensar o futuro da humanidade do que o termo cunhado na atual resistência democrática brasileira: “Ninguém solta a mão de ninguém”. E o caminho é longo. Segue o jogo.
E você caro leitor, como pensa o futuro da humanidade?
João Antonio da Silva Filho – presidente do Tribunal de Contas do município de São Paulo. Mestre em filosofia do direito pela PUC-SP.