O terceiro e último dia do IV Congresso Ambiental dos Tribunais de Contas (CATC) iniciou com um mergulho simbólico nas raízes da cultura amazônica. As apresentações dos grupos indígenas Diri-Diri e Kapói abriram a programação desta sexta-feira (24), preparando o público para o primeiro debate do dia, o painel “Preservação Ambiental e Desenvolvimento Econômico”, mediado pelo conselheiro do Tribunal de Contas de Roraima (TCE-RR) Célio Wanderley, com a participação do vice-reitor da Universidade Estadual de Roraima (UERR), Edson Damas, e do Procurador-Geral do Ministério Público de Contas (MPC-RR), Paulo Sousa.
Ao abrir o painel, o conselheiro Célio Wanderley destacou o orgulho de discutir um tema tão essencial para o futuro da região. “Participar desse evento é motivo de orgulho. Eu nasci em uma comunidade indígena e fui educado em uma escola indígena no Amajari. Conheço bem os povos originários e suas necessidades. Em Roraima, temos realidades distintas: povos isolados, povos com contato controlado pela Funai e pelo Ministério da Justiça, e aqueles do lavrado, com interação mais direta com a sociedade. Todos precisam de apoio e respeito às suas formas de vida”, afirmou.
Riqueza natural e responsabilidade compartilhada
O vice-reitor da UERR, Edson Damas, apresentou uma análise abrangente sobre o desafio amazônico de conciliar conservação e produção. “Roraima tem cerca de 90% do seu território legalmente protegido. São 33 terras indígenas homologadas e mais de 21% do território em unidades de conservação, além de áreas federais destinadas a fins militares. Isso mostra o quanto o estado tem compromisso ambiental, mas também revela os limites para o desenvolvimento econômico tradicional”, explicou.
Damas defendeu uma nova lógica de exploração sustentável do território, baseada na valorização da floresta em pé e em práticas que conciliem o uso econômico com a proteção ambiental. “Enquanto 1 hectare de soja valer mais do que 1 hectare de floresta em pé, a floresta vai continuar caindo. Precisamos inverter essa lógica, criando mecanismos que façam a preservação gerar riqueza”, afirmou.
Ele lembrou que a produção econômica dentro de terras indígenas e unidades de conservação é possível, desde que dentro dos parâmetros legais e ambientais. Exemplos práticos foram citados: o rebanho de 60 mil cabeças de gado da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, o extrativismo da castanha pelos Wai-Wai e o turismo sustentável no Monte Roraima. “Essas experiências mostram que é possível gerar emprego, renda e conservar a floresta. Precisamos estimular pesquisas e investir em capital intelectual para consolidar esse novo modelo”, defendeu.
O vice-reitor também alertou para o desequilíbrio regional na produção de conhecimento científico. “Apenas 2% dos pesquisadores do Brasil estão no Norte e Nordeste. Isso precisa mudar. A Amazônia deve ser pesquisada por quem vive nela, entende suas dinâmicas e sente seus desafios”, concluiu.
Ciência e escuta como ferramentas de transformação
O Procurador-Geral do Ministério Público de Contas, Paulo Sousa, iniciou sua fala com uma provocação: “Quem deve pesquisar sobre a Amazônia? Um estrangeiro ou alguém que vive nela?”. Ele reforçou que o desenvolvimento econômico só será possível com ciência e respeito às populações tradicionais.
“Não existe desenvolvimento sem pesquisa e sem ouvir os interessados. Não posso impor arranjos produtivos de cima pra baixo. Preciso saber o que os povos indígenas e quilombolas querem. Eles sobreviveram 500 anos isolados, nós que temos que aprender com eles”, afirmou.
Sousa destacou o potencial econômico da agrofloresta, comparando-a com o agronegócio convencional. “Um hectare de agrofloresta pode gerar mais riqueza e de forma contínua do que um hectare de soja ou milho. É uma produção sustentável, que mantém o equilíbrio do ecossistema e garante renda às comunidades”, explicou.
O procurador também elogiou iniciativas locais, como o programa estadual de produção de grãos em comunidades indígenas, que fornece insumos e estrutura para que produzam de forma autônoma. “Esse modelo é um exemplo que deveria ser copiado em outros estados. Ele mostra que é possível produzir dentro de áreas protegidas com responsabilidade”, destacou.
Para Sousa, o grande gargalo amazônico ainda é a ausência de investimento em ciência e formação de pesquisadores locais. “Somos o único estado do Brasil sem um número de mestrados e doutorados compatível com a população. Precisamos ter programas voltados para temas amazônicos, como direito indígena, solo alagado e manejo sustentável. Sem ciência, continuaremos sendo estudados por outros, quando deveríamos ser os protagonistas”, disse.
Reflexão e compromisso com o futuro
O painel encerrou com uma mensagem unificada dos três participantes: é preciso repensar o modelo de desenvolvimento da Amazônia, valorizando o conhecimento local, a ciência e as parcerias entre povos, governos e instituições.
O debate foi aplaudido pelo público, que reconheceu a relevância do tema e o compromisso dos painelistas em buscar soluções que conciliem crescimento econômico e preservação ambiental. “Discutir essas questões é um ato de coragem e de amor à Amazônia”, resumiu o procurador Paulo Sousa.
IV CATC
O IV CATC acontece de 22 a 24 de outubro no Centro Amazônico de Fronteiras da Universidade Federal de Roraima (CAF/UFRR), em Boa Vista (RR). A edição deste ano tem como tema “Governança Climática e Justiça Socioambiental: o papel do Setor Público e dos Tribunais de Contas na construção da sustentabilidade”.
O evento é realizado pela Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon), Tribunal de Contas de Roraima (TCE-RR) e Instituto Rui Barbosa (IRB), em parceria com o Governo do Estado de Roraima e com a Universidade Federal de Roraima (UFRR) e tem patrocínio da Eneva e apoio institucional do Conselho Nacional de Presidentes dos Tribunais de Contas, da Associação Brasileira dos Tribunais de Contas dos Municípios (Abracom), da Associação Nacional dos Ministros e Conselheiros Substitutos dos Tribunais de Contas (Audicon), do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), da Defensoria Pública do Estado de Roraima (DPE-RR), do Ministério Público de Contas de Roraima (MPC-RR), do Ministério Público do Estado de Roraima (MPRR) e da Assembleia Legislativa do Estado de Roraima (ALE-RR). Esta quarta edição do congresso tem como mídia parceira a Fundação Rede Amazônica e a CBN Amazônia, e conta com o apoio da Econorte e da BRS.
Texto: Luan Guilherme Correia (MPC/RR)
Foto: William Roth (Draco Digital)
Edição: Walquiria Domingues (TCE-RR)