Levantamento nacional da violência contra crianças e adolescentes

Renato Rainha

No ano passado, a Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon) me convocou para coordenar uma auditoria nacional na área de segurança pública, tendo em conta a grave situação da violência e da criminalidade reinante em nosso país.

Com a equipe de coordenação da auditoria nacional, que foi realizada sob a modalidade de levantamento, propusemos o tema de trabalho — Violência Contra Crianças e Adolescentes — que foi prontamente aceito pela Atricon e pelos Tribunais de Contas que participaram da fiscalização.

Antes de definir o objeto do levantamento, foram realizados vários painéis para oitiva dos entes da União componentes do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA), criado pela Lei 13.431, de 04 de abril 2017.

A etapa seguinte foi dedicada a ouvir especialistas na matéria, da área não governamental, por exemplo, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), a Coalizão Brasileira pelo Fim da Violência Contra Crianças e Adolescentes e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

Paralelamente, a equipe de coordenação também realizou ampla pesquisa e análise de trabalhos realizados por diversos tribunais de contas do Brasil relativamente ao tema violência contra crianças e adolescentes.

Dessa forma, e com informações técnicas e dados estatísticos, foi possível definir o objeto do levantamento: apurar e analisar as ações de políticas públicas dos entes do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA) na prevenção e enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes. O referencial normativo que embasou o levantamento é vasto, tanto internacional como nacionalmente, mas se faz necessário destacar, por sua relevância, três normas nacionais:

a) O artigo 227 da Constituição estabelece absoluta prioridade nas ações de proteção e no atendimento da criança e do adolescente, especialmente no tocante à destinação de dotação orçamentária específica e execução de serviços e políticas públicas que lhes garantam o direito à vida, à saúde, à dignidade, à alimentação, à educação, à liberdade, ao convívio familiar e comunitário, entre outros;

b) O Estatuto da Criança e Adolescente – ECA, Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, estabelece o dever do Estado, da família e da sociedade de assegurar proteção integral e prioridade absoluta aos direitos e às necessidades das crianças e adolescentes;

c) A Lei 13.431 de 04 de abril de 2017, institui o Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente, com o objetivo de assegurar às crianças e aos adolescentes, vítimas ou testemunhas de violência, atendimento integral especializado e plena proteção visando prevenir nova violência e revitimização.

Estabelecido e limitado o objeto do levantamento, que contou com a participação de 20 Tribunais de Contas, foram executados dois projetos-pilotos para testar a lógica e efetividade do planejamento, um pelo Tribunal de Contas do Piauí (TCE/PI) e o outro pelo Tribunal de Contas de Rondônia (TCE/RO), bem como foi realizado treinamento presencial de auditores na Escola de Contas Públicas do Tribunal de Contas do Distrito Federal (Escon/TCDF).

Concluído o treinamento, os auditores foram a campo efetuar a devida fiscalização e coleta de informações, oportunidade em que realizaram entrevistas, inspeções e análises de documentos, o que permitiu o preenchimento de um questionário com 85 questões elaborado pela equipe de coordenação.

Os achados são de deixar qualquer um estarrecido com a falta de gestão competente, de estrutura, de pessoal qualificado e de dotação orçamentária específica para a proteção dos direitos da criança e do adolescente no Brasil, como se pode perceber pelas informações apresentadas a seguir.

Em apenas nove dos 20 estados auditados existe plano específico para a prevenção e enfrentamento da violência contra a criança e o adolescente, o que dificulta, em muito, a articulação dos entes do SGDCA e a alocação de dotação orçamentária específica.

Somente sete dos 20 estados possuem matriz intersetorial para capacitação dos profissionais que atuam na área. Essa capacitação é fundamental, pois permite aos representantes do SGDCA que conheçam todo o fluxo de atendimento e o devido protocolo envolvendo todos os órgãos participantes no caso de violência contra a criança e adolescente.

Também foi detectada ausência, em sete dos 20 estados, de definição de fluxo na rede estadual de ensino para orientar os profissionais de educação no caso de revelação espontânea de violência por parte de aluno.

Os conselhos tutelares, em grande número, funcionam em condições precárias, sem equipamentos essenciais, sem meio de transporte adequado, em local inapropriado, com pessoal sem a devida qualificação e em número insuficiente para atender a demanda, e com arquivos físicos rudimentares que não garantem a segurança e o sigilo de documentos e informações sensíveis.

Melhor sorte não dispõem os Creas/Cras e serviços de acolhimento, tão importantes para apoiar as vítimas e familiares de violência que são dependentes econômica e materialmente do agressor. Esses importantes equipamentos públicos estão sucateados na maioria dos estados. Dos 20 estados objeto do levantamento, apenas 10 dispõem de delegacias com equipes multidisciplinares (psicólogos e assistentes sociais) para apoiarem os policiais no atendimento das crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.

Em 65% dos estados fiscalizados, os municípios com mais de 50 mil habitantes não possuem vara de Justiça especializada de crimes contra crianças e adolescentes, e nos estados do Amazonas, Ceará, Mato Grosso, Minas Gerais, Paraíba e Santa Catarina foram identificados municípios com mais de 100 mil habitantes que não possuem promotorias de Justiça especializadas da Infância e Juventude.

Onde existem delegacias especializadas, somente em 12 estados os profissionais estão capacitados para atenderem as crianças e adolescentes; em apenas 11 estados esse atendimento é realizado em local apropriado.

Os centros de atendimentos integrados, tão importantes por oferecerem tratamento integral, humano e ágil para crianças e adolescentes vítimas de violência, pois reúnem, num único lugar, delegacia, promotoria e justiça especializadas, defensoria pública, atendimento socioassistencial, perícia, saúde, etc., somente foram instituídos em nove dos 20 estados auditados. Portanto, o Levantamento Nacional da Violência contra Crianças e Adolescentes, realizado pela Atricon, revelou-nos a deplorável situação do Sistema de Garantia do Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA), com graves problemas de governança, gestão, orçamentário, carência de pessoal qualificado, equipamentos, materiais, protocolos, capacitação, entre outras deficiências que comprometem sobremaneira a prevenção, proteção e assistência às crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.

Assim, a absoluta prioridade, constante do art. 227 do texto constitucional, e a proteção integral, prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e na lei que estruturou o Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA), não passam de promessas ocas e de dois compromissos da nação brasileira que ainda estão longe de serem concretizados, mesmo porque, até a presente data, não constam como prioridade na pauta política governamental do nosso país.

Renato Rainha é conselheiro do TCDF, coordenador da Rede Nacional de Informações Estratégicas para o Controle Externo (InfoContas) e presidente do Comitê de Segurança Pública do Instituto Rui Barbosa (IRB)

Artigo originalmente publicado no Correio Braziliense em 06.08.2025