O bem de todos

O bem de todos*

O fogo é um elemento carregado de significação. Ao longo da história, muitas labaredas foram acesas para eloquentes queimas de livros, sempre com deploráveis propósitos. Mao Tsé-tung tratou de fazê-lo, na sua Revolução Cultural. Antes e depois dele houve outros episódios. Em 1933, o nazismo incinerou milhares de obras: Thomas Mann, Freud e tantos outros “inimigos” viraram cinzas em praças públicas, inclusive com o aplauso de tantos. Aliás, mais de um século antes, naquelas mesmas terras, Heinrich Heine já vaticinara: “onde se queimam livros, acabam-se também queimando pessoas”.

Livros dizem muito mais que o acervo literário, religioso, científico, político, que contemplam. Destruí-los nas fogueiras do ódio ou da intolerância pode ter o mesmo significado que pisotear seu conteúdo. E quando esse livro é a Constituição, a violência que se expressa na afronta às suas disposições alcança a todos aqueles que estão sob seu manto.

O respeito à Constituição e ao princípio democrático deve ser o ponto referência para todos, a começar por aqueles que nos representam, nos parlamentos e nos governos. Obra humana, nossa Lei Maior tem suas virtudes e defeitos, mas que não se cogite de desconstruí-la. E que suas mudanças (ainda necessárias, mesmo depois de quase 100 emendas) sejam decididas somente por quem investido com o poder outorgado pelo povo, seu único titular.

Hoje temos bons motivos para celebrar os 30 anos da Constituição Cidadã. Seus inúmeros dispositivos são produto de um longo processo de discussões e concertações, que nos legaram um arranjo institucional equilibrado. Mas o destaque dessa construção legítima e plural é reconhecer, entre os princípios fundamentais da República, a dignidade da pessoa humana e a promoção do bem de todos (onde o SUS, mesmo com problemas, é um belo exemplo).

Tenhamos a inspiração dos iluministas e a maturidade de cuidar dessa planta ainda tenra, a fim de que ela cresça vigorosa e não seque pelos agravos ou voluntarismos, o que poderia ser pretexto para, desacreditada e alegadamente inservível, ser calcinada pelo desrespeito ou pela força.

* Cezar Miola, conselheiro do Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul.