O Caso do Prefeito Ordenador de Despesas

José de Ribamar Caldas Furtado*

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Existem dois regimes jurídicos de contas públicas: a) o que abrange as denominadas contas de governo, exclusivo para a gestão política do Chefe do Poder Executivo, que prevê o julgamento político levado a efeito pelo Parlamento, mediante auxílio do Tribunal de Contas, que emitirá parecer prévio (CF, art. 71, I, c/c art. 49, IX); b) o que alcança as intituladas contas de gestão, prestadas ou tomadas, dos administradores de recursos públicos, que impõe o julgamento técnico realizado em caráter definitivo pela Corte de Contas (CF, art. 71, II), consubstanciado em acórdão, que terá eficácia de título executivo (CF, art. 71, §3º), quando imputar débito (reparação de dano patrimonial) ou aplicar multa (punição).

E quando o Chefe do Executivo desempenha funções de ordenador de despesas, tem o Tribunal de Contas competência para julgar as respectivas contas?

Preliminarmente, é importante ressaltar que essa situação acontece apenas nos pequenos Municípios. Sucede que, na Administração Federal, na Estadual e nos grandes Municípios, o Chefe do Executivo não atua como ordenador de despesas, em razão da distribuição e escalonamento das funções de seus órgãos e das atribuições de seus agentes. O problema reside apenas nos Municípios nos quais o Prefeito acumula as funções políticas e as de ordenador de despesas.

Há tempo essa questão vem sendo examinada nos Tribunais Superiores.

A discussão foi levada ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) em consequência de débito imputado, em processo de contas, contra Prefeito (CF, art. 71, §3º), ante a identificação, qualitativa e quantitativa, de dano ao patrimônio público municipal, cuja responsabilidade foi atribuída ao Chefe do Executivo. Em oposição, foi alegado que tal imputação de débito implica julgamento de contas públicas e que somente a Câmara de Vereadores tem competência para julgar contas de Prefeito (CF, art. 31, §2º).

Para esses casos, o STJ firmou o seguinte entendimento: o Prefeito submete-se a duplo julgamento. Um político, perante o Parlamento, precedido de parecer prévio; outro técnico, a cargo da Corte de Contas.[1]

E não poderia ser diferente, pois, se assim fosse, bastaria o Prefeito chamar a si as funções atribuídas aos ordenadores de despesas e estaria prejudicada uma das mais importantes competências institucionais do Tribunal de Contas, que é julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por recursos públicos (CF, art. 71, II). Sem julgamento de contas pelo Tribunal, estaria neutralizada a possibilidade de o controle externo promover reparação de dano patrimonial – mediante a imputação de débito prevista no artigo 71, §3º, da Lei Maior – ou impor as sanções previstas em lei (CF, art. 71, VIII), haja vista que a Câmara de Vereadores não pode imputar débito ao Prefeito ou aplicar-lhe penalidade.[2] Isso produziria privilégio discriminatório que consistiria em imunidade para os administradores municipais, sem paralelo em favor dos gestores estaduais e federais.

Vale lembrar que é com base no artigo 71, II, parte final, da Constituição Federal que o Tribunal de Contas da União julga as tomadas de contas especiais referentes aos recursos federais repassados aos Municípios via convênio, imputando responsabilidade aos Prefeitos Municipais. Ora, se os Tribunais de Contas Estaduais estivessem impedidos de julgar contas de gestão de Prefeitos ordenadores de despesas, em razão da natureza do cargo que ocupam, igualmente o Tribunal de Contas da União não poderia fazê-lo.

Assim, por imposição do razoável, o regime de julgamento de contas será determinado pela natureza dos atos a que elas se referem, e não por causa do cargo ocupado pela pessoa que os pratica. Para os atos de governo, haverá o julgamento político; para os atos de gestão, o julgamento técnico.

Nesse passo, Flávio Sátiro Fernandes explica que, se o Prefeito “se posiciona como agente político e como ordenador de despesas e de dispêndio, assinando empenhos, emitindo cheques, autorizando gastos, homologando licitações, enfim, responsabilizando-se por todas as despesas, das menores às maiores, pois todas são por ele ordenadas”, está sujeito a duplo julgamento. “Um, político, emitido pela Câmara de Vereadores, sobre as contas anuais oferecidas pela administração e examinadas, previamente, pelo Tribunal de Contas que sobre elas emite, apenas, um parecer. O outro, técnico e definitivo, exarado pela Corte de Contas, que conclui pela legalidade ou ilegalidade dos atos praticados pelo Prefeito, na qualidade de ordenador de despesas”.[3]

Nessas circunstâncias, a apreciação das contas de governo do Chefe do Executivo municipal será consubstanciada na peça denominada parecer prévio (CF, art. 71, I, c/c 75, caput), enquanto as contas de gestão do Prefeito ordenador de despesas serão julgadas mediante a emissão de acórdão (CF, art. 71, II, c/c 75, caput), que terá força de título executivo, caso haja imputação de débito ou aplicação de multa (CF, art. 71, §3º).[4] Alguns Tribunais de Contas Estaduais processam as contas de governo e de gestão, apresentadas pelos Prefeitos, nos autos de um único processo; nessa hipótese, constarão nesse processo dois atos decisórios (parecer prévio e acórdão) emitidos pelo Órgão de Contas.

Pelo outro lado, em decorrência da inelegibilidade por rejeição de contas, é antigo o debate em torno dessa mesma questão na esfera da Justiça Eleitoral. Em 01/09/90, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), nos autos do Recurso Especial Eleitoral nº 8.974/SE,[5] com base na inteligência dos artigos 71, §§1º, 2º e 3º, e 75 da Constituição — que conferem às decisões dos Tribunais de Contas efeitos mais do que opinativos —, por unanimidade de votos, decidiu:

a) demonstrada cabalmente a improbidade administrativa do ordenador de despesas pelo Tribunal de Contas, é aplicável o artigo 15, V, da Constituição, reconhecendo-se a inelegibilidade do candidato, apesar da existência de ação na esfera judicial, que não contesta todos os processos de contas;

b) é procedente a impugnação de registro de candidatura se o impugnado teve as suas contas rejeitadas pela prática de atos de improbidade devidamente comprovados, atentatórios à probidade administrativa e à moral, caracterizando-se, assim, o abuso no exercício da função.[6]

De modo diverso, em 22/09/08, os Ministros do TSE, ao julgarem conjuntamente os Recursos Especiais Eleitorais nº 29.535/PB[7] e 29.117/SC,[8] decidiram, por 4 (quatro) votos a 3 (três), que cabe somente às Câmaras Municipais o julgamento das contas prestadas pelos Prefeitos, tendo como órgão auxiliar o Tribunal de Contas do próprio Município ou do Estado. O Presidente do TSE, Ministro Carlos Ayres Britto, votou no sentido de que o sistema de prestação de contas é misto, submetendo a prestação anual de contas ao julgamento político dos Vereadores e ao Tribunal de Contas, nos casos em que o Prefeito atua como ordenador de despesas. Mas seu posicionamento foi vencido, embora tenha sido acompanhado pelos Ministros Joaquim Barbosa e Felix Fischer. Para a corrente vencida, deveria ser aplicado à esfera municipal o disposto no artigo 71, II, da Constituição, segundo o qual compete ao Tribunal de Contas julgar as contas dos administradores de dinheiro, bens e valores públicos e ainda as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário.[9]

Importa informar que, em razão de recurso interposto contra o julgamento proferido no supramencionado Recurso Especial Eleitoral nº 8.974/SE, o Supremo Tribunal Federal (STF), em 17/06/92, analisou a possibilidade de o julgamento do Prefeito ordenador de despesas produzir efeitos na seara do Direito Eleitoral. Naquela oportunidade, concluiu, por maioria, nos autos do Recurso Extraordinário nº 132.747-2/DF,[10] pela impossibilidade de o Prefeito, ainda que na condição de ordenador de despesas, ser julgado pelo Tribunal de Contas Estadual. Nesse caso, não houve propriamente julgamento de contas anuais do Prefeito ordenador de despesas, mediante emissão de acórdão; sucedeu apenas que o Prefeito operou como ordenador de despesas em vários atos administrativos, tidos como irregulares, por ocasião da apreciação das contas de governo, através de parecer prévio. Mesmo assim, o Ministro Carlos Velloso se esforçou em defender a tese em favor do julgamento pela Corte de Contas — sob o argumento de que tais atos, por configurarem improbidade administrativa, seriam caracterizadores da hipótese de inelegibilidade prevista no artigo 1º, I, g, da Lei Complementar nº 64/90 —, mas foi voto vencido.

Agora, com a edição da Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar nº 135/10), está expressamente consignado na parte final da alínea g do inciso I do artigo 1º da Lei Complementar nº 64/90 que o disposto no inciso II do artigo 71 da Constituição Federal se aplica a todos os ordenadores de despesas, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição. Esse dispositivo reflete a boa evolução do Direito aplicável ao Controle Externo.

Contudo, o TSE não aplicou tal dispositivo nos processos de impugnação de registro de candidatura para as eleições de 2012. É o que se extrai, por exemplo, da decisão prolatada no Recurso Ordinário nº 75.179/TO,[11] que apresentou as seguintes conclusões:

a) nos termos do artigo 31 da Constituição Federal, a competência para o julgamento das contas de Prefeito é da Câmara Municipal, cabendo ao Tribunal de Contas a emissão de parecer prévio, o que se aplica, inclusive, a eventuais atos de ordenação de despesas;

b) a ressalva final constante da nova redação da alínea g do inciso I do artigo 1º da Lei Complementar nº 64/90, introduzida pela Lei Complementar nº 135/2010 — de que se aplica “o disposto no inciso II do artigo 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesas, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição” —, não alcança os chefes do Poder Executivo;

c) os Tribunais de Contas só têm competência para julgar as contas de Prefeito quando se trata de fiscalizar a aplicação de recursos mediante convênios (art. 71, VI, da Constituição Federal).

Ante esse entendimento até então firmado no TSE, cabem os seguintes esclarecimentos:

a) o artigo 31 da Constituição Federal é norma de organização[12] do Município — e por isso só poderia mesmo se referir à fiscalização (caput) e ao julgamento (§2º) de contas feitos pela Câmara Municipal —, que não torna o Prefeito imune à incidência do sistema nacional de controle externo, cuidadosamente estruturado pelo constituinte nos artigos 70 a 75 (é o que está expressamente consignado no artigo 75);

b) a simetria constitucional existente entre os comandos dos artigos 31, §2º, e 49, IX, combinado com o do 71, I, é perfeita e acabada, e se exaure na correspondência que existe entre esses dois julgamentos políticos (federal e municipal), não produzindo, desse modo, efeitos em prejuízo da incidência do artigo 71, II, da Lei Maior, que se refere a procedimento absolutamente distinto;

c) o Tribunal de Contas da União, quando julga tomada de contas especial referente à aplicação de recursos repassados pela União ao Município, mediante convênio, o faz por força do disposto no inciso II, parte final, do artigo 71, e não com base no inciso VI.

Com essa última observação, enfrenta-se a parte mais complicada dessa anterior posição do TSE. Não se pode confundir fiscalização, que é a atribuição referida no inciso VI do artigo 71 da Carta da República, com julgamento, previsto no inciso II, e uma ação não implica a outra; são inúmeros os casos de órgãos que receberam a missão de fiscalizar, mas não julgam porque não há previsão constitucional; é o que ocorre com a Controladoria-Geral da União (CGU), o Ministério Público e o próprio Parlamento, que, via Comissão Parlamentar de Inquérito, pode investigar os atos de todos os administradores públicos, mas somente tem competência para julgar as contas de governo do Chefe do Executivo (CF, arts. 58, §3º, 71, I, e 49, IX).

Imagine-se que, por essa interpretação do TSE, o Prefeito poderia ser considerado inelegível em decorrência de julgamento de contas, feito pelo Tribunal de Contas, relativas à aplicação de recursos repassados ao Município via convênio, por menor que fosse o montante do dinheiro transferido. Mas, se o Prefeito, pelas suas próprias mãos, se apropriasse da maior parte dos recursos movimentados em todo o orçamento anual do Município, a ação direta da Corte de Contas não produziria efeito no campo eleitoral, e o Colegiado de Contas estaria impedido de promover a respectiva reparação patrimonial, mediante a imputação de débito prevista no artigo 71, §3º, da Constituição Federal.

Note-se que a movimentação de recursos recebidos pelo Município via convênio integra a movimentação global de recursos contemplada no orçamento municipal (princípio da universalidade); portanto, vê-se que o TSE inverteu a lógica de que mais vale o todo que qualquer de suas partes.

É da maior importância ressaltar que o TSE, com a composição de então,  já havia firmado jurisprudência segundo a qual compete ao Tribunal de Contas do Estado analisar e julgar as contas referentes a recursos do Fundef[13] aplicados pelo Chefe do Executivo Municipal, não sendo necessário o julgamento dessas contas pelo Poder Legislativo.[14] Assim, o próprio TSE já afirmava que não seria somente na hipótese de recursos de convênio que tal procedimento deveria incidir.

Pelos mesmos motivos e fundamentos, essa interpretação seria aplicada também nos casos de contas do Fundo Municipal de Saúde (FMS), do Fundo Municipal de Assistência Social (FMAS), do Fundo Previdenciário, do Serviço de Água e Esgoto (SAE), do Fundo Municipal para Infância e Adolescência (FIA), etc. Percebe-se que o cerco estava se fechando.

A verdade é que, em razão das características legais e constitucionais das contas de gestão, não existe no País, nem poderia, procedimento legal que preveja sequer o encaminhamento de tais contas para julgamento pela Câmara de Vereadores; isso quer dizer que nunca houve e não haverá tal julgamento.

O fato curioso é que, no julgamento conjunto das Ações Declaratórias de Constitucionalidade nº 29/DF[15] e 30/DF[16] e da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4578/DF[17], o Supremo Tribunal Federal havia afirmado, sem ressalvas e sem interpretação conforme a Constituição, a constitucionalidade da alínea g do inciso I do artigo 1º da Lei Complementar nº 64/90, com a redação da Lei Complementar nº 135/10, apesar dos votos proferidos pelos Ministros Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Celso de Mello, que destacaram, especificamente, o entendimento de que o julgamento do Prefeito ordenador de despesas pelo Tribunal de Contas é inconstitucional; essa posição teve ainda a adesão do Ministro Cezar Peluso, mas não foi acolhida pelos outros 7 (sete) ministros. O Ministro Marco Aurélio, pertencente à corrente majoritária, quanto ao conteúdo da citada alínea g, disse: “Não vislumbro a necessidade de ressalvar o inciso I do artigo 71 da Carta Federal. Tenho como constitucional, portanto, o preceito”.[18]

Mas esse julgamento não foi levado em consideração pelo TSE durante as eleições de 2012. O Tribunal, mantendo a anterior linha de raciocínio, continuou a afirmar que “a ressalva final constante da nova redação da alínea g do inciso I do artigo 1º da Lei Complementar nº 64/90, introduzida pela Lei Complementar nº 135/2010 — de que se aplica ‘o disposto no inciso II do artigo 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição’ —, não alcança os chefes do Poder Executivo. Os Tribunais de Contas só têm competência para julgar as contas de Prefeito quando se trata de fiscalizar a aplicação de recursos mediante convênios (art. 71, VI, da Constituição Federal)”.[19]

Nesse contexto, argumentava-se que, caso prevalecesse a decisão do Tribunal Excelso, o TSE não poderia continuar aplicando essa tese, pois assim estaria desafiando a autoridade do Supremo Tribunal Federal, que julgou constitucional, sem qualquer ressalva, a alínea g do inciso I do artigo 1º da Lei Complementar nº 64/90, com a redação dada pela Lei Complementar nº 135/10 (Lei da Ficha Limpa), afastando o controle de constitucionalidade, mediante a incidência do princípio da interpretação conforme a Constituição.

Por oportuno, cabe trazer à baila os ensinamentos de Luís Roberto Barroso, quanto ao exercício do princípio da interpretação conforme a Constituição: “Não é mero preceito hermenêutico, mas, também, um mecanismo de controle de constitucionalidade pelo qual se declara ilegítima uma determinada leitura da norma legal (…). Visto pelo lado negativo, tem caráter invalidatório, sendo acertada sua equiparação a uma declaração de nulidade sem redução de texto”.[20]

No mesmo tom é a orientação do STF, como se vê na ementa do paradigmático acórdão proferido no julgamento da Representação de Inconstitucionalidade nº 1.417-7/DF: “O princípio da interpretação conforme a Constituição (verfassungskonforme auslegung) é princípio que se situa no âmbito do controle da constitucionalidade, e não apenas simples regra de interpretação. A aplicação desse princípio sofre, porém, restrições, uma vez que, ao declarar a inconstitucionalidade de uma lei em tese, o STF — em sua função de Corte Constitucional — atua como legislador negativo, mas não tem o poder de agir como legislador positivo, para criar norma jurídica diversa da instituída pelo Poder Legislativo”.[21]

Ainda bem que no dia 26/08/14, a Corte Superior Eleitoral evoluiu para assentar o seguinte:[22]

a) as alterações das hipóteses de inelegibilidades introduzidas pela Lei Complementar n° 135/10 foram consideradas constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI nº 4.578 e das ADCs nº 29 e 30, em decisões definitivas de mérito que produzem eficácia contra todos e efeito vinculante, nos termos do artigo 102, §2º, da Constituição da República;

b) nos feitos de registro de candidatura para o pleito de 2014, a inelegibilidade prevista na alínea g do inciso I do artigo 1º da Lei Complementar n° 64/90 pode ser examinada a partir de decisão irrecorrível dos Tribunais de Contas que rejeitam as contas do Prefeito que age como ordenador de despesas;

c) entendimento, adotado por maioria, em razão do efeito vinculante das decisões do Supremo Tribunal Federal e da ressalva final da alínea g do artigo 1º, I, da Lei Complementar n° 64/90, que reconhece a aplicação do “disposto no inciso II do artigo 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição”;

d) vencida nesse ponto, a corrente minoritária, que entendia que a competência para julgamento das contas do Prefeito é sempre da Câmara de Vereadores.

Agora, é preciso que a questão fique bem resolvida no STF. Até então, alguns Ministros vinham proferindo decisões monocráticas desconstituindo julgamentos feitos por Tribunais de Contas (Gilmar Mendes,[23] Marco Aurélio[24] e Celso de Mello[25]), enquanto outros negavam tais pedidos, mas sem analisarem o mérito da questão (Ricardo Lewandowski[26], Dias Toffoli[27] e Cármen Lúcia[28]). Bem entendendo o sentido e o alcance do julgamento das contas do Prefeito ordenador de despesa, o Ministro Luiz Fux proferiu judiciosa decisão, em 24/06/13, considerando válido o acórdão do Tribunal de Contas[29].

O certo é que a parte final da alínea g do inciso I do artigo 1º da Lei das Inelegibilidades, com a redação da Lei da Ficha Limpa, está em perfeita harmonia com todo o sistema nacional de controle externo idealizado pelo constituinte de 1988 (arts. 71, I e II, e 75).

Desse modo, além de ser o único e necessário caminho que deve ser adotado pela Instituição de Contas para efeito de imputar débito ao Prefeito ordenador de despesas (CF, art. 71, §3º), o julgamento das contas, prestadas ou tomadas, do Prefeito que esteja na condição mencionada deve servir também para lançar o nome do gestor ímprobo, segundo a avaliação do Tribunal de Contas, no rol dos inelegíveis.



[1]   STJ, 2ª Turma, ROMS 11.060 / GO, Rel. Min. Laurita Vaz, Rel. para acórdão Min. Paulo Medina, 25/06/02, D.J. 16/09/02, p. 00159. Em outra assentada, o STJ entendeu que o Prefeito será julgado pelo Tribunal de Contas se, na condição de ordenador de despesas, cometer ato de improbidade (STJ, 2ª Turma, ROMS 13.499 / CE, Rel. Min. Eliana Calmon, 13/08/02, D.J. 14/10/02, p. 00198).
[2]   Flávio Sátiro Fernandes observa que “algumas vozes teimam em repetir, com evidente má-fé, às vezes, que os Prefeitos não podem ser responsabilizados por esses atos, por serem agentes políticos. Ora, é sabido que um dos princípios que regem a fiscalização contábil, orçamentária, financeira e patrimonial dos negócios públicos é a universalidade, ou seja, é obrigada a prestar contas de seus atos toda e qualquer pessoa que utilize dinheiro público ou dele tenha a guarda. No caso em que os Prefeitos são ordenadores de despesa, querer que eles não se sujeitem ao julgamento do Tribunal significa querer que ninguém se responsabilize por tais despesas, pois outra pessoa não poderá, na hipótese, ser chamada a prestar contas se não foi ela a sua ordenadora” (FERNANDES, Flávio Sátiro. O Tribunal de Contas e a fiscalização municipal. In: Revista do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo. Nº 65. São Paulo: Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, jan./jun. 1991, p. 75-81, 77 e 78).
[3]   FERNANDES, Flávio Sátiro. O Tribunal de Contas e a fiscalização municipal. In: Revista do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo. Nº 65. São Paulo: Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, jan./jun. 1991, p. 75-81, p. 77.
[4]   Nesse sentido, o Tribunal de Contas de Minas Gerais editou a Súmula 107, vazada nos seguintes termos: Os Chefes de Poder Municipal, ao atuarem como ordenadores de despesas, terão seus atos julgados pelo Tribunal de Contas e serão responsabilizados pessoalmente por eventuais ilegalidades.
[5]   TSE, Plenário, Respe 8.974 / SE, Rel. Min. Pedro da Rocha Acioli, 01/09/90, publicado em Sessão.
[6]   Nesse sentido, o Tribunal Regional Eleitoral do Maranhão respondeu a Consulta nº 3371. No voto, prolatado de acordo com o Parecer da lavra do Procurador Regional Eleitoral José Leite Filho, o Relator do processo, Juiz Federal Roberto Veloso, explicou que outra questão ocorre quando incide “a hipótese do artigo 71, inciso II, da CF/88, que, por sua vez, confere aos Tribunais de Contas o poder de julgar as contas dos agentes responsáveis por dinheiro ou bens públicos. Não existindo outro órgão juridicamente qualificado para exercer essa competência constitucional, a deliberação da Corte de Contas é verdadeira decisão, sujeitando o ordenador de despesas, cujas contas tenham sido rejeitadas por irregularidades insanáveis, à inelegibilidade. É o caso das contas de gestão, fundos contábeis municipais e contas de convênios. Julgadas irregulares pelo Tribunal de Contas Estadual, para ser considerado inelegível o ex-Prefeito, faz-se necessário que as irregularidades que levaram à rejeição das contas se caracterizem pela má-fé, fraude ou nota de improbidade e que tenha transitado em julgado a última decisão do Tribunal de Contas que possuir efeito suspensivo, independentemente de decisão da Câmara Municipal”.
Nesses termos, entendeu o TRE-MA que é “inelegível o ex-Prefeito Municipal cujas contas de gestão foram desaprovadas pelo Tribunal de Contas do Estado e que não dependem de aprovação pela Câmara Municipal em razão de irregularidades caracterizadas por má-fé, fraude ou nota de improbidade administrativa” (TRE-MA, Plenário, CTA 3371, Rel. Juiz Roberto Veloso, 25/06/08, D.J. 14/07/08).
[7]   TSE, Plenário, Respe 29.535 / PB, Rel. Min. Marcelo Ribeiro, 22/09/08, publicado em Sessão.
[8]   TSE, Plenário, Respe 29.117 / SC, Rel. Min. Arnaldo Versiani, 22/09/08, publicado em Sessão.
[9]   Conforme notícia veiculada no site do TSE, http://www.tse.gov.br, em 22/09/2008.
[10] STF, Plenário, RE 132.747-2 / DF, Rel. Min. Marco Aurélio, 17/06/92, D.J. 07/12/95.
[11] TSE, Plenário, RO 75.179 / TO, Rel. Min. Arnaldo Versiani, 08/09/2010, publicado em Sessão.
[12] Luís Roberto Barroso preceitua “que as normas constitucionais enquadram-se na seguinte tipologia:
a) normas constitucionais que têm por objeto organizar o exercício do poder político: NORMAS CONSTITUCIONAIS DE ORGANIZAÇÃO;
b) normas constitucionais que têm por objeto fixar os direitos fundamentais dos indivíduos: NORMAS CONSTITUCIONAIS DEFINIDORAS DE DIREITO;
c) normas constitucionais que têm por objeto traçar os fins públicos a serem alcançados pelo Estado: NORMAS CONSTITUCIONAIS PROGRAMÁTICAS”.
(BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. 5ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 94).
[13] Foi substituído pelo Fundeb.
[14] TSE, Plenário, Respe 101-82 / MS, Rel. Min. Henrique Neves da Silva, 11/12/12, publicado em Sessão.
[15] STF, Plenário, ADC 29 / DF, Rel. Min. Luiz Fux, 16/02/2012, D.J.E. 29/06/12.
[16] STF, Plenário, ADC 30 / DF, Rel. Min. Luiz Fux, 16/02/2012, D.J.E. 29/06/12.
[17] STF, Plenário, ADI 4578 / DF, Rel. Min. Luiz Fux, 16/02/2012, D.J.E. 29/06/12.
[18] Vide o inteiro teor do acórdão, página 330 de 383, disponível no site do STF (www.stf.jus.br), em 29/10/12. Na ementa do decisório está expressamente consignado: “13. Ação direta de inconstitucionalidade cujo pedido se julga improcedente. Ações declaratórias de constitucionalidade cujos pedidos se julgam procedentes, mediante a declaração de constitucionalidade das hipóteses de inelegibilidade instituídas pelas alíneas ‘c’, ‘d’, ‘f’, ‘g’, ‘h’, ‘j’, ‘m’, ‘n’, ‘o’, ‘p’ e ‘q’ do art. 1º, inciso I, da Lei Complementar nº 64/90, introduzidas pela Lei Complementar nº 135/10, vencido o Relator em parte mínima, naquilo em que, em interpretação conforme a Constituição, admitia a subtração, do prazo de 8 (oito) anos de inelegibilidade posteriores ao cumprimento da pena, do prazo de inelegibilidade decorrido entre a condenação e o seu trânsito em julgado”.
[19] TSE, Plenário, Respe 12.061/PE, Rel. Min. Arnaldo Versiani, 25/09/2012, publicado em Sessão.
[20] BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 183.
[21] STF, Plenário, RI 1.417-7 / DF, Rel. Min. Moreira Alves, 09/12/87, D.J. 15/04/88.
[22] TSE, Plenário, RO 401-37 / CE, Rel. Min. Henrique Neves da Silva, 26/08/14, publicado em Sessão (9.10.2.2).
[23] STF, Decisão Monocrática, Rcl 10.551 / CE, Rel. Min. Gilmar Mendes, 02/09/10, D.J.E. 14/09/10.
[24] STF, Decisão Monocrática, Rcl 10.499 / CE, Rel. Min. Marco Aurélio, 04/09/10, D.J.E. 13/09/10.
[25] STF, Decisão Monocrática, Rcl 10.445 / CE, Rel. Min. Celso de Mello, 12/08/10, D.J.E. 17/08/10.
[26] STF, Decisão Monocrática, Rcl 11.484 / CE, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 07/04/11, D.J.E. 13/04/11.
[27] STF, Decisão Monocrática, Recl 10.550 / CE, Rel. Min. Dias Toffoli, 01/10/10, D.J.E. 18/10/10.
[28] STF, Decisão Monocrática, Rcl 10.548 / CE, Rel. Min. Cármen Lúcia, 26/08/10, D.J.E. 10/09/10.
[29] STF, Decisão Monocrática, Rcl 15.902 / GO, Rel. Min. Luiz Fux, 21/06/13, D.J.E. 24/06/13.

* José de Ribamar Caldas Furtado é conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Maranhão. Professor Adjunto de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário da UFMA. Mestre em Direito pela UFPE. Pós-graduado em Políticas Públicas e Gestão Governamental pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP). Professor convidado da Escola Superior da Magistratura do Estado do Maranhão e da Escola Superior do Ministério Público do Maranhão. Ex-Auditor Substituto de Conselheiro do TCE-MA. Ex-Auditor Fiscal da Receita Federal. Ex-Analista de Finanças e Controle do Ministério da Fazenda. Autor do livro Direito Financeiro, publicado pela Editora Fórum.