Cristiana de Castro Moraes e Manuela Prado Leitão
No candente contexto da ocorrência de desastres ambientais que recentemente assolaram o país, nomeadamente a tragédia ocorrida em diversos municípios do Rio Grande do Sul em função de enchentes causadas pelas fortes chuvas na região, foram editadas, no mês de junho deste ano, duas normas que complementam a legislação ambiental e urbana vigente, além da Política de Proteção e Defesa Civil, em prol da gestão de riscos e respostas a catástrofes da espécie.
O primeiro deles, o Decreto federal nº 12.041, de 5 de junho de 2024, estabelece o Programa Cidades Verdes Resilientes, com o objetivo de fomentar a resiliência das cidades diante dos impactos causados pelas mudanças climáticas, por meio do aprimoramento do meio ambiente urbano, desde uso e ocupação do solo, arborização e mobilidade urbana até uma adequada gestão de resíduos.
Destacam-se dentre seus objetivos a normatização de parâmetros orientadores do planejamento e da “gestão urbano-ambiental sustentável e resiliente”, bem como do fortalecimento da capacidade institucional dos entes federativos no planejamento, diagnóstico, governança e gestão de projetos voltados para a resiliência às mudanças climáticas.
A Lei federal nº 14.904, de 27 de junho de 2024, por sua vez, determina a elaboração de planos de adaptação à mudança do clima, a serem periodicamente atualizados e disponibilizados na internet, para acesso e conhecimento de todos os cidadãos. O objetivo de tais planos é reduzir as vulnerabilidades e a exposição dos sistemas ambiental, social, econômico e de infraestrutura a riscos decorrentes das alterações climáticas.
Para tanto, devem ser priorizadas medidas de enfrentamento a desastres naturais recorrentes, a mitigação do risco climático para minimizar ou evitar perdas e danos, o planejamento e a gestão coordenada de investimentos, conforme graus de vulnerabilidade, entre outros.
Segundo essa norma, cabe ao plano nacional de adaptação estabelecer as diretrizes para os respectivos planos estaduais e municipais, assegurando-se prioridade de apoio aos municípios mais vulneráveis e expostos às ameaças climáticas. Nesse sentido, o monitoramento e a avaliação de diagnósticos por meio de indicadores tornam-se essenciais para a efetividade dos planos, sendo igualmente previstos pela citada Lei.
As medidas arroladas nessas normas enaltecem o direito às cidades resilientes e a elaboração de políticas públicas integradas em todos os níveis federativos para a gestão, mitigação e adaptação ao risco.
Apesar da novidade desses diplomas normativos, o tema em si não é novo. No plano internacional, desde a Declaração de Yokohama, de 1994, passando pelo Plano de Ação de Hyogo, de 2005, até o Marco de Sendai, vigente de 2015 a 2030, todos firmados no Japão, no âmbito das Conferências das Nações Unidas para Redução de Riscos de Desastres (UNDRR), jogaram-se luzes para a importância de políticas públicas voltadas, inicialmente, para ações de resposta e reparação de danos e, em seguida, para a gestão do risco e fomento da resiliência.
A perspectiva de atuação de todos os agentes, mas em especial do setor público, evoluiu de ações a serem adotadas após os desastres, que visassem à resposta e à reparação, para ações de prevenção e mitigação de riscos e vulnerabilidades. A abordagem mais recente da UNDRR, aliás, é de pensar na redução dos riscos de forma integrada aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (a meta 1.5 dos ODS, inclusive, prevê “até 2030, construir a resiliência dos pobres e daqueles em situação de vulnerabilidade, e reduzir a exposição e vulnerabilidade destes a eventos extremos relacionados com o clima e outros choques e desastres econômicos, sociais e ambientais”), pois, para riscos sistêmicos, as repostas devem ser de sustentabilidade sistêmica. Além disso, ela deve ocorrer em todos os níveis, o que no plano nacional perpassa pela União, Estados e Municípios.
Dois pontos podem ser destacados dessa abordagem: o primeiro são as evidências de que os gastos com ações de resposta e reparação dos danos superam em larga escala as despesas com prevenção. Nesse aspecto, vale mencionar que reportagem da Folha de S. Paulo apurou gastos do governo federal de R$ 1,05 bilhão para fazer frente a consequências de desastres em 2023, enquanto apenas R$ 36 milhões foram gastos com prevenção.
O segundo ponto é reconhecer que os desastres não são, em sua maioria, eventos imprevisíveis, sobretudo com o avanço tecnológico e aprimoramento das ciências meteorológicas, no caso de crises climáticas. Imprevisível poderá eventualmente ser a dimensão de seu impacto, mas os fatos que os originam tendem a ser bastante conhecidos. Na realidade, o desastre ambiental resulta da interação entre concomitantes riscos e vulnerabilidades, agravada por falhas regulatórias. Daí a relevância da elaboração de políticas públicas que facilitem a gestão de riscos e evitem retrocessos socioambientais.
Nesse sentido, a Lei nº 14.904/24 muito bem relembra que a falta de um plano de adaptação não deve ser motivo para que políticas setoriais, de desenvolvimento e ordenamento territorial sejam omissas quanto à identificação de vulnerabilidades e de gestão do risco climático. Afinal, os princípios da prevenção e da precaução são de natureza constitucional, positivados no artigo 225 da Constituição Federal de 1988, dado seu caráter transgeracional.
Quer-se com isso dizer que além da necessária estruturação e periódica capacitação da Defesa Civil em todos os níveis federativos, nos termos da Lei nº 12.608/2012, é imprescindível os municípios realizarem o mapeamento das zonas de risco, tal qual preceituado no Estatuto da Cidade, e repensar as políticas de habitação e uso e ocupação do solo, preservação de áreas verdes e florestas, gestão de resíduos sólidos, saúde, educação (principalmente ambiental) e extinção da pobreza e desigualdade de gênero como meios de diminuição das vulnerabilidades e exposição ao risco.
Apesar de não ser o formulador das políticas públicas, o controle externo está diretamente envolvido com essa missão. Para além da fiscalização das contas do Executivo e verificação da legalidade e da conformidade do gasto de recursos do erário nos momentos de crise, os Tribunais de Contas rotineiramente analisam as despesas dos governos com a prevenção e a resposta aos desastres, tecendo recomendações e orientando quanto à previsão desses dispêndios nas leis orçamentárias, em especial para o fim de torná-las mais consistentes no planejamento de longo prazo e, assim, mitigar o impacto dos danos também nas contas públicas.
Nesse aspecto, destaca-se a Nota Recomendatória nº 01/2024 expedida conjuntamente pelo Instituto Rui Barbosa, Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil, Conselho Nacional de Presidentes de Tribunais de Contas, Associação Brasileira dos Tribunais de Contas dos Municípios, Associação Nacional do Ministério Público de Contas e Associação Nacional dos Ministros e Conselheiros Substitutos dos Tribunais de Contas, com o propósito de recomendar aos Tribunais de Contas de todo o país a inclusão prioritária de ações de fiscalização, monitoramento, auditorias, levantamento de dados, orientações e capacitação, entre outras ferramentas das condições gerais de gestão das defesas civis municipais e estaduais, existência de planos de prevenção e mitigação de desastres em harmonia com a legislação ambiental e urbanística, programas e ações orçamentárias para assegurar recursos financeiros para execução dos referidos planos, efetividade de tais programas, transparência pública que viabilize o controle social e educação ambiental.
O caráter pedagógico dos Tribunais de Contas ganha força com inúmeras ferramentas postas à disposição dos gestores e que fortalecem também o controle social. Cite-se como exemplo, o Índice de Efetividade da Gestão Municipal – IEG-M, criado na Corte de Contas do Estado de São Paulo e em pouco tempo estendida para diversos Tribunais de Contas do país, denominado de IEG-M Brasil.
O índice se subdivide em sete áreas – Educação, Saúde, Planejamento, Adequação Fiscal, Defesa das Cidades, Meio Ambiente, e Tecnologia da Informação. Pelo amplo espectro de temas abarcados em seus quesitos, tal indicador pode ser considerado uma espécie de indicador de sustentabilidade, que auxilia o gestor a repensar suas políticas públicas em função dos diagnósticos ali evidenciados. Diversos de seus quesitos estão em harmonia com as metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU.
Às respostas aos quesitos de cada área são atribuídos pesos, gerando uma nota final por área e para o IEG-M de forma global. A essas notas equivalem conceitos, que variam de A (alto índice de efetividade) a C (baixo nível de adequação), caso em que é recomendável ao Município buscar melhorar a efetividade dos gastos públicos para atingir às finalidades legais e ao aprimoramento da qualidade de vida da população.
No que se refere à temática dos desastres, duas áreas do IEG-M ganham destaque: i-Ambiental e i-Cidades. Em coleta desses dados realizada em 2022 e divulgada neste ano de 2024, foi possível identificar o quão defasados ainda estamos na preparação e na resposta aos desastres.
De se destacar que, do total de 2.239 municípios respondentes ao IEG-M Brasil, a média do i-Amb foi a nota C, correspondente ao conceito de baixo nível de adequação.
Detalhando um pouco mais os seus quesitos, pode-se identificar, como ponto de atenção, que 679 municípios não participaram de nenhum programa de educação ambiental em 2022.
No que toca aos aspectos de planejamento, 548 não editaram um Plano Municipal de Saneamento Básico e, daqueles que o fizeram e que monitoram suas metas, 20% não possui nenhum cronograma com relação a essas metas. Dos 80% que o possuem, 53% não consegue cumprir os prazos ou atingem poucas das metas previamente estabelecidas.
Já no que se refere aos resíduos sólidos, a situação também é alarmante: 718 municípios ainda não possuem um Plano Municipal de Resíduos Sólidos, em total descompasso com a Lei federal nº 12.305/2010. Em outras palavras, 14 anos depois de publicada essa norma, que determina a elaboração de planos para todos os entes federativos, muitos municípios ainda não apresentam um planejamento em relação aos seus resíduos sólidos, o que implica dizer em agravamento de riscos de doenças e de desastres (isso sem se mencionar a distância para se alcançar a tão falada economia circular) e no completo despreparo para gerir os resíduos dos próprios desastres.
Adentrando especificamente no i-Cidades, os dados revelam que dos 2.239 municípios, apenas 1 preencheu a qualificação B+ (muito efetiva), tendo todos os demais igualmente aparecido na faixa de conceito C (baixo nível de adequação).
Nesse ponto, é de surpreender que, se por um lado, 78% dos municípios estruturaram suas equipes da Defesa Civil com uma Coordenadoria Municipal de Proteção e Defesa Civil, nos termos da legislação, 55% não capacita seus agentes.
O i-Cidades ainda demonstra que 942 municípios não mapearam áreas de risco de desastres em seus territórios até o ano de 2022, a despeito da correspondente determinação no artigo 42-A do Estatuto das Cidades (Lei nº 10.257/01). Ademais, 472 municípios não possuem mecanismos para proibir novas ocupações de áreas de risco, perpetuando não apenas vulnerabilidades para perdas de vidas e de bens no caso de um desastre, como também problemas de moradia digna.
Há de se destacar que 1.226 municípios informam a população sobre áreas de risco, sendo as divulgações majoritariamente feitas por meio das redes sociais. Por outro lado, 988 não possuem um canal de atendimento de emergência para a ocorrência de desastres, sendo que a maior parte dos que o possuem utiliza o telefone, cujo meio é relevante e não pode ser descartado, mas é frágil diante de um evento que impacta as linhas telefônicas e telecomunicações. Além disso, 621 não possuem sistema de alarme.
Esses dados denotam que aspectos básicos da estruturação da defesa civil são precários, estando os municípios carentes de ações mínimas de prevenção e resposta diante de eventos adversos da natureza, situação que não deve perpetuar, além de estar em completo descompasso com a legislação vigente e com as premissas do direito às cidades resilientes.
O diagnóstico, porém, é reversível e depende de boas ações de planejamento e execução orçamentária. O IEG-M Brasil, nesse aspecto, é um importante aliado dos gestores para evidenciar as prioridades de atuação e constitui ele próprio, por meio de seus quesitos, uma espécie de norte de atuação em prol da sustentabilidade. A ferramenta é acessível a todos por meio do link: https://iegm.irbcontas.org.br/ e aqui fica o nosso convite a esse acesso, visando ao aprimoramento das políticas públicas, da gestão orçamentária e dos riscos ambientais, a fim de pouparmos não só recursos financeiros, mas principalmente, vidas.
Cristiana de Castro Moraes é Conselheira-Corregedora do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP). Presidente do Comitê Técnico de Avaliação de Indicadores de Gestão Pública – IEG-E/IEG-M e Vice-Presidente de Desenvolvimento e Políticas Públicas do Instituto Rui Barbosa (IRB) e membro do Comitê Técnico de Meio Ambiente e Sustentabilidade do IRB
Manuela Prado Leitão é assessora técnica de Gabinete do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP), assistente Técnica do Comitê Técnico de Meio Ambiente e Sustentabilidade (IRB) e pós-doutora pelo Centro de Síntese USP Cidades Globais (IEA/USP)