Por Doris de Miranda Coutinho*
O momento político atual, repleto de acontecimentos relevantes que despertam debates calorosos e a polarização de opiniões sobre inúmeros assuntos, reclama prudência para que as conquistas não se percam.
Para além das divergências políticas momentâneas, espera-se que tudo isso funcione como um passo histórico na consolidação da mudança de paradigmas no comportamento dos cidadãos e dos agentes públicos, valorizando-se a transparência, o controle e a eficiência na gestão pública.
Hoje, no centro das discussões envolvendo o impeachment da Presidente da República, encontra-se a questão a respeito da configuração ou não de crimes de responsabilidade nas condutas por ela praticadas, especialmente quanto as denominadas “pedaladas fiscais” e na edição de decretos de abertura de créditos suplementares, sem autorização legislativa.
Neste processo já em curso na Câmara Federal, originário da denúncia dos juristas Hélio Bicudo, Reale Júnior e Janaína Paschoal, ao receber a denúncia, o Presidente da Câmara limitou-se a esses dois fatos, assim como o Relator da comissão de impeachment. Entretanto, outras denúncias foram protocolizadas naquela casa, inclusive pela OAB, em cujos fundamentados, ambos permanecem.
Portanto, a querela sobre quais as condutas das que são acusadas a presidente, configuram crime de responsabilidade, ainda permanecerá na pauta por algum tempo.
Pois bem, conforme já afirmou o STF em algumas oportunidades, os crimes de responsabilidade do chefe do Poder Executivo possuem natureza híbrida, política e criminal. Por isso, as hipóteses previstas em Lei são consideravelmente imprecisas, diferentemente do que ocorre com os crimes comuns, de natureza puramente penal, os quais são marcados pela exatidão dos seus elementos de tipificação. Daí o porquê do tratamento diferenciado que lhes é conferido quanto a autoridade processante, sendo os de responsabilidade julgados pelo Senado Federal, e os comuns pelo STF.
Igualmente híbrida é a natureza do processo de impeachment, o qual é sim um processo político, mas também o é, jurídico, na medida em que necessita de pressupostos de ordem jurídica, claros e inquestionáveis, que possibilitem a avaliação de índole política da conveniência e oportunidade do afastamento do Presidente da República. E estes pressupostos estão descritos na Constituição, no seu artigo 85, que define os atos do Presidente da República que constituem crimes de responsabilidade.
Na Constituição norte-americana, por exemplo, a indeterminação é consideravelmente maior que na brasileira, pois tem uma única previsão quanto a matéria, dizendo que o Presidente, Vice-Presidente e todos os funcionários civis dos Estados Unidos serão afastados de suas funções quando indiciados e condenados por traição, suborno e outros delitos ou crimes graves, nestes exatos termos.
No sistema brasileiro a Constituição é o ponto de partida para análise desses delitos. E a Lei nº 1.079 de 1950, que define os crimes de responsabilidade e ainda está vigente, dá maior delimitação às situações tipificadoras, elencando-as de modo específico. Mesmo assim, o texto não resolve todas as questões, sendo altamente sugestivo em alguns pontos.
Seguramente, se aplicássemos indiscriminadamente as disposições que tratam das condutas deflagradoras de impeachment, seria provável que poucas autoridades escapariam de serem ali enquadradas.
De qualquer modo, o enquadramento de determinada conduta nessa espécie de crime reclama um juízo político, exercido exclusivamente pelo Poder Legislativo, que não foge, por óbvio, da observância do devido processo legal, baseado no contraditório e na ampla defesa.
Sob o ponto de vista do controle orçamentário e financeiro, a questão que se levanta nesse conturbado cenário, é a de saber se as “pedaladas fiscais” e os decretos de abertura de créditos suplementares sem autorização legislativa, são condutas que podem configurar crimes de responsabilidade. Por isso, ative-me ao conteúdo destes dois fundamentos, contidos nas principais denúncias contra a Presidente e à sua defesa, já posta no processo em andamento. Estes, tecnicamente e em tese, podem ser avaliados, mas não me cabe fazer juízo de valor para o fim de sopesá-los frente a um processo de impeachment, onde se conjugam fatores políticos, sociais e conjunturais, e não apenas os jurídicos.
Achei curiosa a defesa apresentada e sustentada oralmente pelo atual Advogado-Geral da União, José Eduardo Cardozo, na comissão de impeachment na Câmara. Para explicar a questão orçamentária, ele apresentou, na versão escrita, um exemplo doméstico ilustrado com desenhos de frutas e legumes. Mas me parece que faltaram elementos na feirinha do Ministro!
Nem todo decreto de abertura de crédito suplementar foi por anulação de dotação, os quais até podem ser representados pela feirinha desenhada, embora nem nos decretos, nem nas didáticas ilustrações, apareçam de onde saiu o recurso (qual a fonte). Mas não tem desenhos ilustrando as suplementações por excesso de arrecadação e de superávit financeiro de exercícios anteriores, que somavam R$ 2,5 bilhões, efetivamente questionados. Um montante percentualmente insignificante naquele universo de suplementações, que totalizavam R$ 95 bilhões, mas que, a despeito da quantia, configuram conduta que se enquadra como afrontosa às leis orçamentárias.
A Lei Orçamentária Anual de 2015 concedia autorização prévia para a abertura de créditos suplementares, desde que compatibilizados com as metas de resultado primário fixados na LDO. Mas um projeto de lei concomitante aos decretos, pedia sua redução, por frustração de receita e aumento de despesas. Isso evidencia a violação à LOA, pois naquele momento da edição dos decretos já era sabido que a meta estaria sendo descumprida. A compatibilidade se impõe no momento da lavratura do decreto de abertura de crédito, não depois, o que põe por terra o argumento da AGU, de que as metas somente se apuram ao final do exercício. Se fosse assim, não haveria sequer que falar-se em responsabilidade fiscal, pois bastaria se proceder como fora feito neste caso: adequar a norma ao fato e não o fato à norma. Uma total inversão de valores.
Quanto as manobras apelidadas de “pedaladas fiscais”, consistentes, em 2015, no atraso dos repasses, pelo Tesouro Nacional, ao Banco do Brasil, dos recursos financeiros referentes ao Plano Safra, não há como fugir da configuração de operação de crédito, conduta expressamente vedada em lei. Além disso, contabilmente contribuíram para maquiar os resultados fiscais.
Muitos perguntam se as pedaladas já ocorriam antes de 2014. Sim. Recente levantamento feito pelo Banco Central, por determinação do TCU, apurou o impacto destas pedaladas nas contas públicas desde 2001, constatando que elas não ultrapassavam a casa de 0,4% da receita até 2008. Essa proporção começou a subir em 2009, chegando aos 5,1% da receita em 2014, quando foram intitulados de “pedaladas” e fundamentaram a rejeição das contas presidenciais.
Como instrumento de manipulação artificial do resultado da meta fiscal essa prática não é nova e vem se reinventando, fazendo surgir a questão quanto à possibilidade da mudança de entendimento do TCU estar muito mais atrelada ao montante envolvido na prática das intituladas “pedaladas fiscais”, realizadas durante o exercício de 2014, e ao modo de operacionalização – 40 bilhões em operações de crédito para cobertura de programas sociais e empréstimos -, do que à prática em si, consubstanciada na burla de resultados.
Por exemplo, analisando as contas de 2012, o TCU verificou um número significativo de ordens bancárias emitidas em dezembro e sacadas em janeiro. Isso ocorria em todos os exercícios, desde 2008.
Grosso modo, isso é como se qualquer um de nós precisasse virar o ano com determinado saldo bancário em poupança, e, ao mesmo tempo, quitar dívidas, sem ter dinheiro disponível para as duas coisas. Então, no último dia do ano se emitiria cheques para pagar as dívidas, os quais seriam descontados somente no primeiro dia útil do ano seguinte. Desta forma, se estaria cumprindo as duas obrigações: satisfazendo o credor e “maquiando” a poupança!
Conforme o próprio Tribunal de Contas aferiu, esses pagamentos realizados em transição de exercício tinham o propósito de interferir nos indicadores das metas de resultado fiscal. Isso porque essa prática de postergar um montante materialmente relevante de saída de caixa de dezembro para janeiro pode ocasionar superavaliação do superávit primário.
Isso não é outra coisa senão uma produção de resultado fictício, ou seja, uma dissimulação contábil, cujo objetivo é o mesmo para o qual se prestaram as “pedaladas fiscais”.
No caso, o TCU emitiu parecer prévio pela aprovação das contas de 2012, com ressalvas, consignando recomendação expressa. Apesar disso, essa mesma operação se repetiu nos exercícios de 2013 e 2014.
Como se vê, pedalar é um hábito que não faz bem à saúde das contas e a sua maquiagem não as tem deixado mais bonitas. Ao contrário.
Se levássemos em consideração a tradicional cultura orçamentária brasileira, de caráter eminentemente permissivo, insólito e onde, nitidamente, as leis orçamentárias não são levadas a sério, até se poderia questionar se essas “pedaladas fiscais” efetivamente configurariam crimes de responsabilidade. Mas, considerando-se que o equilíbrio orçamentário é uma garantia fundamental de todo cidadão, que lhe permite o efetivo exercício dos seus direitos individuais e sociais, não há dúvidas de que tais condutas se enquadram naquelas arroladas no artigo 85 da Constituição Federal, mais precisamente na hipótese de “atos contra as leis orçamentárias” (inciso VI), capaz de dar combustão jurídica a um processo de impedimento da chefe do Poder Executivo.
Além disso, a Lei nº 4.320/64 não deixa espaço para dúvidas ao determinar que se mantenha o equilíbrio entre a receita arrecadada e a despesa realizada.
O equilíbrio fiscal é dever público de importância primaz. Não à toa, o STF já reconheceu a lei orçamentária como sendo a segunda norma mais importante do ordenamento jurídico, logo após a Constituição da República.
Nesse contexto, negar a ilicitude funcional advinda das “pedaladas fiscais”, é negligenciar a relevância do equilíbrio fiscal como bem fundamental do povo brasileiro. Os fatos tipificam condutas descritas como crime de responsabilidade. Se são causas que ocorriam antes, isso não vale como álibi, tão pouco como argumento de relativização. Se elas vão, ou não, dar procedência aos pedidos de impeachment, é outra história. Caberá ao juízo político do Parlamento decidir.
Igualmente despiciendo, vejo o questionamento em torno da necessidade de comprovação do nexo de causalidade entre a irregularidade e a vontade do agente (dolo ou má-fé), como elemento caracterizador do crime de responsabilidade.
Todo ato levado a efeito pelos agentes públicos são atrelados a ordem legal. Portanto, a simples violação de um dever de conduta pela inobservância de norma a que ele está vinculado, seja constitucional, seja infraconstitucional, configura ação, inação ou omissão dolosa (intencional).
No ambiente político vigente, o apreço ao planejamento e às regras orçamentárias e financeiras parece-me assunto de somenos importância. Cumpre-se, descumpre-se, contingencia-se e suplementa-se com absoluto desrespeito às normas. Talvez por isso tanta celeuma em torno da configuração ou não de crime de responsabilidade, tanto pelas “pedaladas fiscais”, como pelos decretos de abertura de créditos suplementares, sem autorização legislativa.
Rechaçar a prática das ditas “pedaladas” por atentarem contra as leis de orçamento e de responsabilidade fiscal é, sobretudo, mostrar que as leis de finanças públicas existem para serem cumpridas.
Disse o Advogado-Geral da União que a admissão do processo de impeachment da Presidente, por força destes argumentos, estaria a desencadear uma avalanche de impedimentos nos Estados e Municípios, pois que todos os Governadores e Prefeitos utilizam-se das mesmas práticas.
Penso que na hipótese contrária também teríamos severos e devastadores efeitos. E o pior deles seria o completo desprestígio do controle, também naquelas duas esferas de governo, com reflexos imprevisíveis no sonho do equilíbrio das contas públicas e da gestão eficiente.
Doris de Miranda Coutinho, Conselheira do Tribunal de Contas do Estado do Tocantins, ex-Procuradora do Ministério Público Especial, membro honorário do IAB- Instituto dos Advogados Brasileiros, aluna do doutorado em Direito Constitucional da UBA- Universidad de Buenos Aires.