O ideário schumpeteriano e os Tribunais de Contas no Brasil

* Conselheiro Sebastião Helvécio

Artigo originalmente publicado pela Revista do TCE-MG – Faça download AQUI!

Os 34 tribunais de contas brasileiros, por decisão plenária no XXVII Congresso dos Tribunais de Contas do Brasil, homologaram, com apoio da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon) e do Instituto Rui Barbosa (IRB), a Declaração de Vitória 1, que contempla as diretrizes e os compromissos das instituições.

A primeira diretriz apontada — “desenvolver mecanismos e implementar ações para o fortalecimento institucional dos Tribunais de Contas, em obediência ao princípio federativo, enquanto instrumentos indispensáveis à cidadania” — é essencial para que o controle externo brasileiro seja sistêmico, instrumentalizado, qualificado, contemporâneo, eficiente, útil à sociedade e guardião inarredável da moralidade na administração pública, combatendo diuturnamente a corrupção que ameaça o erário.

No bojo das outras 25 diretrizes são listadas ações, boas práticas e caminhos para a melhoria da gestão pública, incluindo-se, aí, os próprios tribunais de contas e a consolidação do sistema como instrumento da cidadania, visando diminuir as desigualdades em todas as suas manifestações, sejam institucionais, regionais ou pessoais.

Os tribunais de contas no Brasil foram criados pelo Decreto n. 966-A, de 7 de novembro de 1890, competindo-lhes exame, revisão e julgamento dos atos concernentes à receita e despesa da República. É importante realçar que esse documento inicial já desvincula o Tribunal de Contas de qualquer poder de Estado, conforme leciona o então ministro da Fazenda Rui Barbosa em sua motivação, ao descrever a Corte de Contas como: “corpo de magistratura intermediária entre a Administração e a Legislatura […] cercado de garantias contra quaisquer ameaças, [que] possa exercer as suas funções no organismo constitucional […]”. O cenário político à época dessa defi nição é o início da era republicana, quando certamente ainda não se imaginava a complexidade da administração pública contemporânea.

As cartas constitucionais brasileiras que se seguiram representam um “ciclo de sístoles e diástoles” 2, ora com aprimoramentos, ora com relaxamentos da função do controle externo. É evidente que este ensaio não tem o escopo de apontar tais avanços e retrocessos, mas de salientar, entre outros intentos, a inovação da emissão do parecer prévio por parte do Tribunal de Contas no exame das contas anuais do presidente da República (Constituição de 1934) e a extinção de vários tribunais de contas estaduais durante a ditadura varguista. A Constituição de 1946 destacou os tribunais de contas e projetou novas complexidades para a sua competência, mas a ditadura instaurada em 1964 minimizou a ação das cortes de contas mediante vários decretos e atos institucionais.

A Constituição Federal de 1988, a Constituição Cidadã, resgata por inteiro a importância dos tribunais de contas, especialmente ao insculpir nos incisos do seu art. 71 as competências que balizam a atuação desses tribunais no fortalecimento da democracia, da república e da federação. Nessa esteira é importante realçar que o reconhecimento explícito de que a eficiência é um princípio constitucional da administração pública ocorreu somente em 1998, com a Emenda Constitucional n. 193, embora o princípio da eficiência já fosse tema recorrente entre administrativistas e ideólogos de políticas públicas.

O princípio da eficiência é autônomo, dotado de normatividade suficiente para vincular as atividades da Administração Pública direta e indireta, de qualquer dos Poderes da União, Estados e Municípios; e mais, na dicção de Batista Junior (2004, p. 130), “um verdadeiro dever de otimização das relações meio-fim e da orientação para o bem comum”.

Aqui é importante demonstrar que o princípio da eficiência não pode ter uma interpretação simplista, que o reduza à mera ideia de economicidade. Ao contrário, o que se deseja do gestor público é qualidade do gasto público, compromisso com resultados e consequentemente com a efetividade e a eficácia. Eis o elo fundamental: é preciso que os gestores e os tribunais de contas trabalhem conjuntamente na missão de zelar pela boa aplicação dos recursos públicos. Para isso, as cortes de contas devem lançar mão de atividades de inteligência para otimizar resultados. A inteligência é toda informação coletada, organizada ou analisada para atender as demandas de um tomador de decisões (CEPIK, 2003, p. 27).

É indiscutível a substituição do velho pelo novo. É preciso implantar um novo ideário nos tribunais de contas. Schumpeter, em seu livro Die Theorie der Wirtschaftlichen Entwicklung4, de 1911, destaca a ação fundamental do empreendedor, “aquele que é capaz de aproveitar as chances das mudanças tecnológicas e introduzir processos inovadores”. Mais tarde, já nos Estados Unidos, em sua obra Capitalismo, Socialismo e Democracia, Schumpeter elabora o conceito que o consagra mundialmente: “destruição criativa”, em que as inovações dos empresários são a força motriz do crescimento econômico sustentado a longo prazo. Em síntese: “há a substituição do velho pelo novo.” Em uma instituição, um novo setor atrai recursos orçamentários em desfavor de outro já estabelecido. No mundo mercantil, novas empresas absorvem negócios daqueles já estabelecidos e, de modo irreversível, novas tecnologias tornam descartáveis competências e equipamentos existentes que poucos dias atrás eram insuperáveis. Há apenas alguns anos, um bilhete aéreo era um talão cheio de folhas, cópias em papel carbono, guardado como a joia da viagem, pois, em caso de extravio, não era possível embarcar. Hoje é completamente diferente: o acesso é por meio eletrônico; a telefonia, a emissão de cheques, o ensino à distância, as redes sociais, as imagens para aperfeiçoar o diagnóstico médico. Enfim, são tantas as novíssimas tecnologias que ocuparam o lugar de outras consagradas no nosso cotidiano.

Parafraseando Schumpeter, a instituição saudável rompe o equilíbrio por meio da inovação. Uma visão sistematizada pode reconhecer cinco ondas schumpeterianas: 1ª onda (1785-1845): energia hidráulica, têxteis, ferro; 2ª onda (1845-1900): vapor, estrada de ferro, aço; 3ª onda (1900-1950): eletricidade, química, motor de combustão interna; 4ª onda (1950-1990): petroquímica, eletrônica, aeronáutica; 5ª onda (1990-dias atuais): redes digitais, software e novas mídias.

No entanto, há resistências à implementação de novas tecnologias e transformações institucionais. Uma digressão histórica nos leva ao ludismo ou movimento ludista, em que a figura de Ned Ludd simboliza a destruição de máquinas que poderiam concorrer com postos de trabalho na Inglaterra. John Kay, inventor da “lançadeira voadora”, uma das primeiras inovações na mecanização da tecelagem, teve a casa incendiada por ludistas em 1753. Onze anos após, James Hargreaves, o inventor da máquina de fiar hidráulica, teve o mesmo tratamento. Hodiernamente adotamos o ludismo como sinônimo de resistência à mudança tecnológica.

Acemoglu e Robinson (2012), em sua obra decorrente da conferência realizada no Institute for Quantitative Social Science, em fevereiro de 2010, em Harvard, Por que as nações fracassam (Why the Nations Fail), defendem o conceito de instituições extrativistas e instituições inclusivas. Estas — que asseguram os direitos de propriedade, criam condições igualitárias para todos e incentivam os investimentos em novas tecnologias e competências — têm maiores chances de conduzir ao crescimento econômico do que as extrativistas, que são estruturadas de modo que poucos possam extrair recursos de muitos. A capacidade que têm aqueles que dominam as instituições extrativistas de beneficiar-se imensamente, em detrimento do resto da sociedade, implica que o poder político, sob instituições extrativistas, é um bem cobiçado, o que leva inúmeros grupos e indivíduos a disputá-lo. Concluem, ainda, os autores, “o pluralismo, pedra angular das instituições políticas inclusivas, requer que o poder político tenha ampla distribuição pela sociedade”.

Nessa esteira, os tribunais de contas do Brasil, ao optarem pela parceria com outras instituições de controle e principalmente pela aproximação com jurisdicionados e entidades da sociedade civil, contribuem efetivamente no empoderamento do cidadão, pilar essencial para que o controle social seja mais efetivo.

Outro autor, da costa oeste dos Estados Unidos, Angus Deaton (2013), da Universidade de Princeton, em seu recente livro The great escape: health, wealth and the origins of inequality, ao analisar os programas de ajuda externa a países em desenvolvimento, conclui pela ineficácia da maioria dos programas implementados e faz uma crítica ao chamado “modelo hidráulico”, que embasa o fundamento de que a simples injeção de recursos promove melhorias nos resultados de políticas públicas. Por outro lado, a Teoria da Modernização, de Seymour Martin Lipset — que, em síntese, propõe que as sociedades, ao crescerem, encaminham-se para sociedades mais modernas, desenvolvidas, civilizadas e democráticas e que as instituições inclusivas brotaram como subproduto — revela-se inconsistente. Um bom exemplo é a Argentina, que, apesar de ser um dos países mais ricos no início do século XIX, não exercitando pluralismo e democracia, não floresceu
com instituições inclusivas.

As fórmulas impostas por organismos internacionais, desde a formulação do Consenso de Washington 6 até as tradicionais receitas do Fundo Monetário Internacional, amparadas na ideia fulcral de que o desenvolvimento incompleto é feito de instituições e políticas de má qualidade, também se mostraram infrutíferas. A lista mágica “do que fazer” — com o quinteto favorito: estabilidade macroeconômica, metas macroeconômicas, redução do Estado, câmbio flexível e liberalização das contas de capital — também se revelou frustrante.

No Brasil, a caminhada para a redemocratização com centralismo e pluralismo é longa e tortuosa. A década de 70, com o crescimento econômico, estimula a possibilidade de ganhos salariais. As greves, proibidas desde 1964, são questionadas em 12 de maio de 1978 com a pioneira greve da fábrica de caminhões da Scania em São Bernardo do Campo. É o ressurgimento do movimento trabalhista brasileiro para o enfrentamento do regime autoritário.

O passo seguinte é a mobilização de inúmeros setores da sociedade civil para a aprovação da eleição direta para presidente da República, que se inicia de maneira discreta em 31 de março de 1983, no recém-emancipado município pernambucano de Abreu e Lima. Na minha cidade natal, Juiz de Fora, tive o privilégio de ser orador, ao lado de importantes líderes, em um comício com mais de 30 mil participantes, no dia 29 de fevereiro de 1984. Seguem-se manifestações por todo o Brasil, como os comícios do Rio de Janeiro em 10 de abril de 1984 (1 milhão de presentes) e de São Paulo em 16 de abril (1,5 milhão de participantes).

A proposta de emenda constitucional n. 5, de autoria do deputado federal Dante de Oliveira, com assinaturas de 170 deputados e 23 senadores, é protocolizada em 2 de março de 1983. Votada em 25 de abril de 1984, em meio a comoção nacional, obtém 298 votos a favor e 65 contra (3 abstenções), mas ainda assim não é suficiente para sua aprovação. Os principais frutos foram a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral e a convocação da Assembleia Nacional Constituinte. Daí resultaram a Constituição Federal de 1988 e a realização das eleições diretas para presidência da República em 1989.

Detalhei um pouco mais essa passagem para que possamos ter uma noção clara do legado democrático que recebemos e, concordando com Acemoglu e Robinson (2012, p. 353), ressalto que: A ascensão brasileira, desde a década de 1970, não foi arquitetada por economistas de instituições internacionais que instruíram as autoridades brasileiras com relação à melhor maneira de criar políticas ou evitar a falência dos mercados. Também não foi resultado natural da modernização. Pelo contrário, foi consequência da construção corajosa de instituições inclusivas por diversos grupos — que acabariam produzindo instituições econômicas inclusivas.

Pode-se inferir que o prestígio dos tribunais de contas, a partir da Constituição de 1988, é decorrente da vontade da sociedade brasileira, expressa nos comandos do constituinte originário. Portanto, a atividade de controle externo é princípio constitucional, e zelar pelo seu fiel exercício é compromisso dos que exercem esta nobre e destacada missão.

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1 Documento referência do Congresso dos Tribunais de Contas do Brasil, 27, Vitória, ES, de 3 a 6 de dezembro de 2013.

2 Para o detalhamento dos períodos de “sístoles e diástoles” na história constitucional brasileira, ver CASTRO, 2007.

3 Modifica o regime e dispõe sobre princípios e normas da Administração Pública, servidores e agentes políticos, controle de despesas e finanças públicas e custeio de atividades a cargo do Distrito Federal, e dá outras providências.

4 SCHUMPETER, J. A. Teoria do desenvolvimento econômico: uma investigação sobre lucros, capital, crédito, juro e o ciclo econômico. Tradução de Maria Sílvia Possas. São Paulo: Nova Cultural, 1997.

5 É a mais importante obra do autor. Critica o conceito de vontade popular e constata o poderio da elite dominante sobre a maioria desorganizada. Publicada em março de 1942.

6 Síntese das medidas propostas por John Williamson, em novembro de 1989, adotadas a partir da década de noventa pelo Fundo Monetário Internacional para o ajustamento de países em desenvolvimento.

* Sebastião Helvécio Ramos de Castro é vice-presidente do Tribunal de Contas de Minas Gerais.