João Antonio da Silva Filho
O grande desafio da humanidade nunca foi apenas produzir riquezas — elas continuam crescendo em escala global. O verdadeiro problema é sua distribuição, que segue em profunda desaceleração. Infelizmente, o capitalismo, em suas diversas modalidades, não tem conseguido enfrentar ou sequer amenizar a desigualdade na distribuição de riquezas produzidas coletivamente. A concentração de renda, longe de ser freada, continua a se intensificar, alimentando tensões sociais, exclusão e instabilidade.
Após o chamado Consenso de Washington — conjunto de diretrizes econômicas elaboradas nos anos 1980 por instituições como o FMI, Banco Mundial e o Departamento do Tesouro dos EUA —, o mundo, especialmente o Ocidente, passou a adotar políticas neoliberais com ainda mais força. O neoliberalismo, implementado por Ronald Reagan nos Estados Unidos e Margaret Thatcher no Reino Unido, foi testado na América Latina sob a ditadura de Augusto Pinochet no Chile. Com base no princípio do “Estado mínimo”, esse modelo promove a redução do papel do Estado por meio de privatizações, concessões de serviços públicos e desregulamentação de setores essenciais como saúde, educação, cultura e até segurança pública.
Nessa lógica, o Estado se torna mero intermediador de recursos públicos transferidos ao setor privado, sem garantir qualidade, acesso universal ou transformação efetiva da realidade dos que mais precisam — os hipossuficientes. O resultado é visível: em 2024, as desigualdades sociais atingiram níveis alarmantes. Os cinco indivíduos mais ricos do planeta mais que dobraram seu patrimônio desde 2020, enquanto cerca de cinco bilhões de pessoas viram sua situação econômica piorar. Atualmente, o 1% mais rico concentra mais riqueza do que os 95% restantes juntos. Sistemas tributários regressivos e monopólios agravam ainda mais essa concentração.
A pobreza, longe de ser superada, voltou a crescer. Segundo o Banco Mundial, até 2030, cerca de 622 milhões de pessoas estarão vivendo em extrema pobreza, enquanto quase 3,4 bilhões sobrevivem com menos de US$ 6,85 por dia. Conflitos armados, crises econômicas e mudanças climáticas têm anulado décadas de progresso. Para piorar, nove em cada dez países adotam políticas que favorecem os mais ricos, como cortes em serviços públicos essenciais e reformas fiscais regressivas, aprofundando as desigualdades.
O agravamento da crise ambiental evidencia de forma contundente os limites do modelo neoliberal. Em 2024, o planeta ultrapassou pela primeira vez o limite crítico de 1,5 °C acima dos níveis pré-industriais, fazendo daquele o ano mais quente já registrado. Esse aumento resultou em uma intensificação sem precedentes de eventos climáticos extremos: ondas de calor prolongadas, secas severas e enchentes devastadoras tornaram-se cada vez mais comuns. Na Europa, o leste enfrentou estiagens históricas, enquanto o oeste sofreu com chuvas torrenciais e inundações. No Brasil, regiões inteiras alternam entre estiagens prolongadas e tempestades violentas, afetando populações vulneráveis, colheitas e infraestruturas básicas.
Todas as áreas glaciares da Europa perderam massa em ritmo acelerado, sinalizando a gravidade da emergência climática. Esse cenário exige ações coordenadas, sustentadas e de longo prazo — justamente o oposto do que propõe o neoliberalismo, com sua lógica voltada ao lucro imediato e à desregulamentação ambiental. Um modelo que reduz o papel do Estado, entrega bens comuns ao capital privado e ignora os limites ecológicos do planeta mostra-se incapaz de enfrentar uma crise dessa magnitude. A resposta necessária exige cooperação global, justiça ambiental e a reconstrução de um Estado comprometido com o bem coletivo e com a preservação das condições de vida na Terra.
A educação mundial, outro pilar essencial para o desenvolvimento humano, também sofre com os reflexos da desigualdade. Embora o acesso à educação tenha melhorado em várias regiões, a qualidade do ensino ainda é uma preocupação. Em 2024, segundo a UNESCO, cerca de 680 milhões de crianças no mundo nunca tiveram suas habilidades de aprendizado avaliadas, e a taxa de exclusão escolar caiu apenas 1% na última década. Nos países da OCDE, a expectativa média de anos de estudo é de 18 anos, mas isso esconde desigualdades profundas. Escassez de professores e o descompasso entre formação escolar e mercado de trabalho são desafios estruturais ainda não superados.
A desigualdade social tem efeitos profundos e diretos sobre a saúde e a segurança pública. Em países de baixa renda, o acesso a serviços básicos de saúde é extremamente precário, resultando em altas taxas de mortalidade infantil, propagação de doenças evitáveis e expectativa de vida reduzida. Já na segurança pública, a combinação de concentração de renda, desemprego e exclusão social alimenta o crescimento da violência, especialmente nas periferias urbanas. Nessas regiões, frequentemente negligenciadas pelo Estado, o vazio institucional é ocupado pelo crime organizado, que, por meio de ações assistencialistas e relações de proximidade com a população local, assume funções que deveriam ser públicas — desde a oferta de serviços até a imposição de normas. Ao mesmo tempo, a atuação das forças de segurança tende a ser seletiva e violenta, atingindo de forma desproporcional as camadas mais vulneráveis da sociedade. Dessa forma, tanto a precariedade na saúde quanto a insegurança revelam as consequências de um modelo socioeconômico excludente, que perpetua privilégios e abandona milhões à margem da cidadania.
Eu pergunto: onde, afinal, o neoliberalismo deu certo? Os dados apresentados não mentem — e são alarmantes. Os “profetas” do Estado mínimo, na verdade, defendem um Estado mínimo apenas para os excluídos. Para os privilegiados, continuam a exigir um Estado máximo, que lhes garanta benefícios, isenções, resgates financeiros e proteção institucional. Insistir nesse modelo econômico é apostar em uma tragédia anunciada. O Estado do século XXI não pode mais ser refém do capital financeiro nem subordinado à lógica da competição desenfreada. Sua missão deve ser clara: preservar o planeta e assegurar condições dignas de vida para todos, hoje e nas gerações futuras. Isso exige uma mudança profunda de valores — menos ambição desmedida e mais responsabilidade coletiva; menos individualismo competitivo e mais solidariedade entre pessoas, comunidades e nações.
A lógica do lucro fácil, da exploração ilimitada da natureza e do crescimento econômico baseado na competição permanente — marcas registradas do neoliberalismo — tem produzido uma verdadeira catástrofe humana e ambiental. Romper com esse modelo não é apenas necessário, é urgente. Precisamos construir uma nova ordem global, fundamentada na justiça social, na sustentabilidade e na dignidade humana.
A responsabilidade por uma distribuição mais justa de renda e oportunidades é coletiva — envolve a sociedade civil, as instituições e todos os setores comprometidos com o futuro do planeta. No entanto, é ao Estado que cabe o papel central. Livre da captura pelo capital, ele deve atuar com coragem e firmeza em favor do bem comum, promovendo a equidade, a inclusão e o desenvolvimento integral do ser humano.
Somente um Estado ativo, ético e orientado por valores humanitários — liberto da tutela do capital — será capaz de enfrentar os grandes desafios do nosso tempo e garantir um futuro digno e sustentável para as próximas gerações.
João Antonio da Silva Filho é conselheiro do Tribunal de Contas do Município de São Paulo e vice-presidente de Defesa de Direitos e Prerrogativas e Assuntos Corporativos da Atricon